Not About Love - Capítulo 03

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“E em breve despertarei e perceberei que meu coração não terá que se despedaçar.”
Lost Without Your Love - Bread


O novo inquilino da cabana ao lado se manteve em seus limites nos dias seguintes a chegada. Desde a entrega dos produtos de limpeza não o vi mais e com isso ele perdeu o atrativo, tornando-se outro indivíduo que pouco lembrava. Claro que para o meu desinteresse surgir tão rápido foi preciso que novas distrações deixassem minha cabeça ocupada. No dia seguinte a discussão com Nick recebi uma ligação sua e atendi inocentemente acreditando que ouviria a voz da Sra. Harper (ou mamãe):
— Por favor, não desligue. Será que pode me ouvir um segundo apenas?
— Estou ocupada com as palavras cruzadas do jornal, então não me venha com assuntos muito complicados.
— Ando mal com o que te disse ontem. Fiquei arrependido assim que abri a boca para falar a burrada... — ele fez uma pausa na voz pesarosa, voltando a se explicar quase em sussurros. — Você foi embora antes que pudesse pedir desculpas.
— Depois de tudo o que aconteceu Nick, a mágoa da nossa conversa foi passageira. Uma decepção a mais ou a menos... Que diferença faz? — comentei com descaso suas desculpas e acostumada com suas grosserias.
— Por favor, não faça isso...
— Isso o que?
— Agir como a vítima. Não combina com você.
— Ah, desculpe, esse é o seu papel — brinquei, mordendo a ponta da caneta. — Veja que engraçado, acabei de ler uma dica aqui no quadro de palavras cruzadas que me lembra muito você: “animal que se veste de cordeiro”. Acho que sabemos a resposta.
Ouvi o seu suspiro de possível arrependimento pela ligação e o silêncio de que pararia de se importar.
— Mais alguma coisa para me dizer? — completei, chamando-o de volta a conversa.
— Não, Tracy, não tenho nada para você. Agora só para mim.
— Hm, e o que é?
— É hora de parar com a insistência, de acreditar que vamos terminar bem. Fica cada vez mais claro que não há o menor esforço da sua parte em superar o que aconteceu.
— Na posição em que está é uma afirmação bastante conveniente. Caso se colocasse em meu lugar, pararia de agir como um idiota. Melhor dizendo... — pigarreei como recurso dramático — nunca teria agido como um idiota.
— Eu... eu preciso resolver uma briga que está acontecendo no bar — falou fugazmente, como costumava fazer ao ser imprensado contra a parede ou quando recebia na própria cara a culpa das suas atitudes. Nick sempre dava um jeito de escapar da realidade. — Entrarei em contato quando chegar a nova cópia do divórcio.
— Ah, será um prazer invalidar mais um documento.
— Boa noite, Tracy — cortou, dando-me um último ruído do telefone devolvido ao gancho.
Retirei o jornal das minhas pernas, mal o enxergava com a visão fremente. Colocando-o na mesa de canto ao lado do sofá, verifiquei não estar sozinha. Um buldogue inglês repousava no espaço perto de mim, seus olhos murchos encarando o rosto da nova dona, as bochechas caídas babando o estofado marrom. Hunter se apegara a bola de meias que eu improvisara; mastigava-a no canto da boca, com mordidas leves e cansadas, empapando-a de saliva espessa. Hunter fazia parte do grupo de novas distrações.
Naquele dia de manhã visitei o pet-shop para praticar o discutido com Amparo. Era desconfortável o fogo da maioria dos animais da espelunca, incontáveis filhotinhos de cães batendo as patinhas no vidro, balançando os rabos felpudos, pisoteando os demais e disputando os latidos altos e agudos. Sensação aborrecedora tamanho alvoroço. Perguntei a atendente, que reconheci como a filha do xerife de Laketown, se vendiam cachorros adultos ou menos... “exagerados” que os da vitrine. Deu-me um pedaço de papel com o endereço de um senhor que cuidava de cães abandonados e que os disponibilizava para adoção. Um ponto positivo para o lugar é que ele ficava a caminho de casa e se novamente fosse uma empreitada desastrosa, não perderia a viagem.
O velhote morava numa cabana minúscula mais ao centro da floresta e os tapumes de madeira gasta no quintal serviam de canil. Ele mostrou a mim diversos cachorros agitados e brincalhões, contentes por uma nova visita, variando as raças, tamanhos e o nível de animação. Ignorei a todos como ignorei aos filhotes, mas assumo que aconteceu um tipo de “amor a primeira vista” quando, no meio de toda a festa, encontrei um gordo preguiçoso dono da melhor expressão monótona, para não dizer “incomodada” — julgava de seu canto a balbúrdia dos demais. Para mim foi como ver o meu gatinho cinza e ranzinza numa versão canina. Estava certa que o levaria, que não encontraria outro com tamanha indiferença natural. Tratei de fechar negócio com o velho Wilson, acertando o preço para garanti-lo como companhia.
Enquanto os preparativos eram feitos, o senhor explicou-me sua história:
— Esse aqui foi deixado adolescente preso naquela árvore ali. Se tornou meu cachorro favorito para caça. Era muito bom em achar pássaros e pegar eles para mim só para ganhar carne de graça. O chamo de Hunter.
— Que criativo! — ironizei, o que passou despercebido. — Por que ele parou de caçar?
— Olha o tamanho dessa bola! Se correr 1 metro cai pro lado morto!
— Ih, o prazo de validade tá vencido?
— O que é isso, dona?! Aqui tem cachorro velho, mas aviso logo pro cliente pra não correr risco. A dona não vai deixar o Hunter preso na árvore de novo, né? O coitado não aguenta outra não.
— Bem, evitarei fazer isso. Acho na verdade que sequer conseguirei. Olhando assim, Hunter é bastante jeitosinho.
— Deixa só ele começar a bufar... A dona vai mudar de ideia! — O senhor Wilson deu uma risada rouca de um fumante experiente. — É brincadeira, viu? — correu para corrigir o comentário assim que percebeu minha expressão desgostosa.
— Vamos acertar o preço? O senhor tem alguma coisa para ele que possa me servir? Brinquedos, tigelas de água e comida, shampoo...
Não, senhor Wilson não pode disponibilizar nada disso. Os cachorros brincavam no quintal e aos arredores da cabana, a água e a comida eram postos em vasilhas plásticas de cozinha, o shampoo servia para os humanos, cachorros tomavam banho com sabão de lavar roupa, nada de mordomia. E precisei seguir os mesmos passos para acomodar Hunter em minha casa, pois não faria o caminho inverso à cidade de Laketown para comprar seu kit-sobrevivência. Um cobertor velho, comida de gente e a bola de meia seria o bastante até o dia seguinte ou o resto de sua vida.
Com uma última coçada em sua orelha e uma discreta simpatia por tê-lo por perto, fui ao escritório desejando energia para trabalhar. Abri o notebook e me deparei com o fracasso da mesma tentativa na noite passada, a página com um único parágrafo escrito e o traço piscando na tela, pronto para que eu continuasse de onde havia parado.
"Assustadora era a facilidade com a qual divagava como agora. Analisava obsessiva o casal à frente trocando carícias gentis, risinhos divertidos e olhares apaixonados. Sem desejar isso, Rose invejou-os pela maneira boba que agiam. Mal se lembrava da última vez que dividira uma mesa com o marido sem a única intenção de convencer os sócios de Donald e suas esposas que eram o casal perfeito. Se passasse mais alguns minutos batucando os finos dedos na mesa e os admirando como uma solteirona infeliz, perderia o próximo trem que a levaria para o trabalho. Então, logo após pagar, Rose retirou-se da Cafeteria Greenfield com pressa, pronta para chegar à estação, de preferência sem atrasos."
— Delete... delete tudo isso agora, Tracy. Está horrível! — falei ao apertar compulsivamente a tecla, a expressão ofensiva incentivava o gesto repetitivo.
Por mim Rose e Donald morreriam no fundo da gaveta junto a todo o meu plano para aquela história que nunca sairia do roteiro. Era tão medíocre quanto romances de banca feitos para o prazer de senhorinhas espevitadas. Pelo visto nunca mais escreveria algo digno de publicação. Depois de tantas semanas descrente no que um dia chamei de talento, comecei a aceitar minha aposentadoria prematura. O fim do único trabalho que gostei na vida aniquilado por incompetência própria.
Com uma colher na mão, sentei no chão em frente à geladeira aberta. A brisa fria me acalmava, embora a temperatura na região já fosse baixa. Desistira de escrever, do escritório e agora comia um pote de sorvete de creme e biscoito, erguia o talher no ar e conversava sobre o que aconteceu até então:
— Como ele teve coragem de vir me importunar com aquele documento patético? Achou mesmo que seria fácil se livrar de mim? Ora, Nick O'Malley, passou 10 anos da sua vida maldita ao meu lado e ainda não aprendeu que sempre serei a pedra em seu sapato fedorento? Tome Hunter, ao menos você merece ser feliz. — E o buldogue lambeu a colher que estendi. — Nunca se case, é uma grande cilada.
O cachorro latiu com a cabeça coreografando uma lagartixa, as bochechas chacoalhavam enquanto lambia o focinho amassado. Acredito que, de alguma forma, ele me compreendia — ou apenas forçava empatia para ganhar mais colheres com restos de sorvete.
— Ah, bolinho de carne, queria que falasse... Será que me acharia estúpida? Provavelmente — suspirei, enchendo a boca de sorvete. — É melhor assim, continuar burro e mudo, sofrerá menos. Deixe tudo para mim, porque sobrevivo — lamentei e deitei preguiçosa no chão, um chute leve na porta da geladeira a fechou. — Que noite propícia para uma boneca*. Por que não pega para sua dona, hein? Guardo esse pote docinho para você lamber.
Hunter chiou desanimado, os olhos murchos concentrados em mim com melancolia. Ele se deitou e apoiou a cabeça nas patinhas largas com expectativas sobre meus próximos passos.
— Monte de carne preguiçoso! — resmunguei, logo de pé para ir ao banheiro do andar de baixo. Costumava guardar os remédios na farmácia.
Há muito desconhecia minha imagem no espelho, evitava parar em frente a ele desde o rito da camisa xadrez e cabelo desgrenhado. Uma moribunda ambulante, amarela, esquelética e feia. O rosto ossudo influenciava o tamanho de meus olhos e as maçãs do rosto mostravam-se protuberantes. Nick O’Malley fodeu comigo.
— Poderia ser pior... Tenho todos os membros do corpo, certo? Nem sou tetraplégica ou bulímica. Apenas horrorosa, nenhuma novidade — ironizei ao engolir os comprimidos e me curvar para beber água na torneira.
— Pronto... Onde parei mesmo? Ah, claro, dormir. — Na sala de estar joguei as almofadas do sofá no chão. Os travesseiros retirados da cama estavam organizados já na minha posição favorita. Deitei-me confortável com o braço estendido. — Hunter? Hunter, bolinho, venha cá! — Em minutos, arrastados pelos seus passos lentos, ocupou o espaço sob minha mão. — Boa noite, companheiro, tente não urinar no meu tapete ou mais tarde vou esfregar ele em sua cara.
Durante meia hora esperei o efeito do remédio. As cortinas entreabertas mostravam o breu do lado de fora, a madrugada silenciosa e o único som do vento forte rebatendo nas árvores e no lago embalavam-me numa cantiga de ninar. Entrei no sono mais profundo e só acordei ao ouvir latidos infernais que se distanciavam e aproximavam dos meus ouvidos. Hunter agitou de um lado para o outro da sala, hora na porta de entrada, hora perto do sofá.
— Meu Deus do céu, seu mal-educado, cale a boca! — reclamei afofando o travesseiro sob a cabeça. — Estou tentando dormir!
Por um flash recordei o que sonhava quando quis retornar para o ponto em que parei; apenas uma pedreira abandonada e Grace Sanders me dando um empurrãozinho. Desisti do pesadelo típico, e Hunter contribuiu ao não parar de importunar.
— Tudo bem, eu já entendi, você não vai me deixar em paz até me ver de pé. Se arrependimento matasse, estaria enterrada sob os escombros de Chernobyl! — Enquanto falava e saía do sofá, Hunter estancou próximo à porta e encarou-me com a cabeça pendendo para o lado. — Sim, é isso mesmo o que você ouviu, falei “arrependimento” caso tenha ouvido errado.
Por um segundo procurei algum relógio. O de pulso costumava largar por aí, no balcão da cozinha, do banheiro, no criado-mudo ou no batente da varanda. O que ficava naquele cômodo desde que cheguei à cabana revezava entre funcionar e atrasar 120 minutos, eu nunca sabia quando estava dando a hora certa. Por último restou o da cozinha, que para a preguiça que sentia no momento, estava longe, longe, longe demais. Esqueci as horas e coloquei o óculos de grau marcado por digitais, ao menos agora via um único Hunter ao invés de dois.
— Senhorita O'Malley? — Logo após a voz masculina, que demorei um segundo para reconhecer, veio quatro batidas na porta.
Hunter voltou a latir, dessa vez batucando as patas na sombra da visita que se formava na brecha abaixo do portal.
— Por isso me acordou? Preciso te ensinar a ficar quieto e fingir que não tem ninguém em casa sempre que houver visitas — coloquei as botas aos tropeços, impaciente com a inconveniência.
— Boa noite, senhorita O'Malley — falou o visitante quando abri a porta.
— Senhorita? Que insulto — debochei com leveza. — O que faz aqui?
O sorriso britânico, que beirava o desajeitado, se dissipou diante da recepção nada calorosa.
— Atrapalho em algo?
— O meu sono. Por quê?
— Desculpe, eu... não tive a intenção. — Turner balançou a cabeça tentando recuperar a simpatia. — É que são 20h, achei que não dormisse cedo.
— E não durmo. Você disse 20h?
— Sim.
Arregalei os olhos, um pouco desnorteada.
— De que dia mesmo?
— Dia 27...? — Ele uniu as sobrancelhas, tentando se situar na conversa.
— Hm, depois do dia 26? — continuei, ligando os pontos em voz alta.
— Sim, até onde se sabe o 27 vem depois do 26. — Com um sorriso crítico, mal disfarçou a zombaria pelo questionamento estúpido.
— Aparentemente dormi quase 24 horas seguidas — calculei de modo ilustrativo com os dedos. — Parece um avanço exagerado para quem até um dia desses estava com insônia. Será um recorde?
A sensação era semelhante a acordar no meio de um coma. A perda de um bloco de tempo que deveria reunir diversos acontecimentos da minha vida estavam no mais puro branco. Ainda assim se eu abrisse o notebook e recorresse aos sites de notícias as manchetes seriam as mesmas numa atualização desnecessária do assunto de ontem ou da semana passada.
— Não sei o que está acontecendo — o vizinho prosseguiu, chamando minha atenção novamente —, mas pensei em retribuir a sua simpatia. Poderíamos conversar um pouco e dividir... Isso — ele ergueu uma garrafa lacrada de bourbon.
— Ah, Turner, por que não disse antes? Teria evitado toda essa ladainha apenas com tal passagem direta — expliquei, abrindo o resto da porta e apontando para dentro de casa. — Não ligue para o Hunter, ele é tão raivoso quanto seu focinho aparenta.
— Se tinha uma coisa que não esperava encontrar em sua casa era um cachorro — disse, sequer disfarçando a expressão impressionada. Ele se inclinou para acariciar Hunter e completou: — Talvez um gato... Jogaria todas as minhas fichas num felino.
— Enquanto a criação de panteras e leoas não é permitida me divirto com o que me resta... — balancei a cabeça para evitar uma resposta prolongada. — Vou pegar os copos.
— Tudo bem. Ér... Como está aguentando esse frio? Não seria melhor acender a lareira?
— Tanto faz — dei de ombros. Estava acostumada com o calor da cabana, dentro dela e com minhas botas dificilmente sentia um frio exagerado neste período.
Enquanto Turner entrava despretensioso na sala de estar, chamei Hunter para comer. Acreditava ter deixado ao menos um hambúrguer de caixa para ele e torcia que tivesse mais um para que eu mesma lanchasse depois.
Voltei à sala com os copos e gelos, recebendo um sorriso curioso do rapaz:
— É uma bela casa, senhorita O'Malley — elogiou, próximo a cabeça empalhada de um alce. — Imagino que isso não faça parte do seu hobby, então foi do seu pai?
— Primeiro, pare com isso de "senhorita". Se for para me chamar formalmente, pelo menos faça do jeito certo, usando o "senhora". Para a infelicidade do meu marido, ou “ex”, ainda somos legalmente casados — tagarelei, abrindo o bourbon e nos servindo. — No entanto, prefiro que me trate como Tracy. Posso te chamar de Alex?
Ele balançou a cabeça positivamente, aceitando de bom grado o copo de bebida e dando o seu primeiro gole.
— Desculpe, não havia notado sua aliança, muito menos pensei na possibilidade de ser casada.
— Em processo de divórcio — corrigi e ocupei a poltrona de frente ao fogo. Apontei para que ele me acompanhasse acomodado na que estava ao lado. — O que nos leva a segunda parte: os animais empalhados são do meu marido e de meu sogro, ambos caçadores.
— Interessante... — disse. Percebi que seus gestos eram um tanto reclusos, bastante diferente de suas perguntas.
— Não, não é tão interessante. É uma história bem sem graça na verdade, desde o meu sogro até essas cabeças horrendas.
— Se não gosta, por que ainda as tem?
— Estou tão acostumada. Tirar elas daqui seria o mesmo que deixar as paredes nuas. Sem falar que morro de preguiça de arte, não conseguiria preencher os buracos com quadros... — olhei os animais um tanto pensativa, o copo de bourbon apertado com firmeza. — E devolver elas a Nick seria o mesmo que assumir que não há volta — Sorri sem jeito. — Ah, e o que tem achado da casa?
— É aconchegante como a sua, mas numa versão menos exótica e mais metódica, para não dizer completamente chata.
— Isso estava implícito no metódico — falei quase em tom corretivo. Alex pareceu não se importar, decidi mudar de assunto: — E como foi a limpeza?
— Trabalhosa. Necessária. Obrigado por me ajudar naquele dia ou estaria até hoje organizando tudo.
— Foi um tipo de troca de favores... Você também me ajudou muito. — Não tinha a intenção de aprofundar os meus motivos por ter recorrido a Alex, então cortei qualquer oportunidade de fazer suas perguntas seguindo com a fala: — O que veio fazer em Laketown? Está de férias?
— A princípio, sim, estou de férias. Mas também considero a casa como um tipo de retiro. Deus sabe o quanto piraria se não tivesse procurado um “santuário” para me acalmar. — Seus olhos estreitaram profundos e misteriosos, encarando obsessivamente as chamas na lareira. — Espero que tenha sido uma boa ideia.
— Não sei o que te trouxe aqui, e nem me interessa, mas passo por algo semelhante ao “prestes a pirar”, então posso assegurar que má ideia não foi.
Embora tenha dito que não me interessava pelo que o trouxe a Laketown, a bisbilhotice apontava para o lado oposto. A paciência, no entanto, fez com que eu fosse mais cautelosa nas investidas sobre Alex, muito diferente de sua indiscrição e visível interesse sobre a minha vida.
— Quero te perguntar uma coisa, mas não parece muito certo... — E lá vinha mais uma prova do que eu acabara de pensar. — Arriscarei, porque é algo que anda martelando minha cabeça. Ér... Qual a sua idade?
Inevitavelmente dei uma gargalhada fora dos meus padrões. Por um segundo quase cuspi o bourbon fazendo um teatrinho.
— Meu Deus homem, seja discreto — fiz uma falsa repreensão, mas ele não correu para se corrigir. — 29 anos.
— É, estamos na mesma faixa. — Analítico, deu de ombros.
— Por que essa humilhante pergunta? — ergui as sobrancelhas, encarando-o.
— Disse que era casada e pensei se foi um casamento recente. Conclui que não, porque o modo como você fala dessa casa, do seu marido e das redondezas dá a entender que é um casamento de bastante tempo. Mesmo assim parece tão nova... Há um contraste nos dois pontos.
— Eu tinha 21 anos, um bebê perto da aparência de hoje.
— Pois saiba que te daria 23, 24 facinho. — Ele sorriu simpaticamente, acariciando um pouco do meu ego e talvez me fazendo pensar que embutida em sua fala havia uma segunda intenção.
— Tanto faz. — O educado seria agradecê-lo, mas a ideia de flerte afastou essa atitude esperada. — Os dias passam e sinto que me torno cada vez mais uma velha caquética. Em breve precisarei de um andador para me arrastar por aí.
— Ah, não diga isso! Sabe que junto ao andador vêm as fraldas geriátricas, é um tipo de combo inseparável — completou ao disfarçar uma risada para autenticar o próprio comentário.
— Não, por favor, não vamos nos prolongar nessa imagem assustadora — balancei as mãos, rindo naturalmente como há muito não fazia. — Voltando aos meus 29 anos num estalar de dedos.
Os vestígios de sono foram perdidos. Alex permaneceu em minha casa até às 23h, quando ele mesmo olhou o seu relógio e se repreendeu pela má-educação de quase atingir a madrugada. Possivelmente em outro dia concordaria com ele, sequer permitindo sua entrada na cabana, mas pela primeira vez desde a separação compreendi a importância de sorrir e dialogar com outras pessoas. Dos poucos amigos que tive até então, embrulhava-me o estômago a ideia de desabafar com eles. A mulher estranha, calada, um pouco sisuda, que julgava e criticava dentro de sua cabeça, evitava abrir a boca para não soar socialmente abominável. Guardava as opiniões construídas com cuidado todas dentro de si, num abrigo protegido.
Na casa do lago os meus contatos eram minúsculos com Amparo, os telefonemas da minha mãe e agora o gorducho do Hunter, que nem mesmo deveria entrar na categoria. A mania de conversar em voz alta não surgiu à toa, muito menos a sua crescente piora.
Aparentemente Alex me deixava confortável para conversar por ser um tanto descartável. Talvez o tempo que passasse em Laketown fosse pequeno e a sua amizade não se encaixasse num tipo de certeza. E caso um dia essa “amizade” desperte algum interesse em mim, duvido que o próprio Alex goste dessa proximidade. Eu ainda sou a amante frívola, não é mesmo? Que se vitimiza e adora estragar a vida do marido... Ou será ex? Bem, de qualquer jeito ainda posso recorrer a minha mãe quando a solidão percorre níveis extremos, mas só até às 21h, porque daí em diante ela se dedica estritamente às suas séries policiais.
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*Boneca: gíria usada para antidepressivos, pílulas, drogas e barbitúricos para dormir.

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