PARTE II
Dolorida, era assim que eu
estava... Por dentro e por fora. Uma lata de refrigerante esmagada pelo pneu do
carro, duvidando de sua própria reciclagem, duvidando de sua própria
importância no mundo. Poderia ser um saco preto ou a caçamba de lixo, o gato estrebuchando
no meio de uma avenida ou panfletos amarelos empurrados com a força do vento.
Era o mendigo sentado no canto do cubículo, estendendo minha mão para o café
com gosto de graxa e o pão pisado pelo Diabo. Decadência, da noite para o dia,
do dia para a noite, reduzida a um grão de areia, condição que me fazia pensar.
E ainda sentia a euforia da
noitada, de quando gritava e abraçava o homem ao meu lado, dizendo como uma
débil descontrolada:
- Já disse que te amo? Acho que
nunca disse isso. Eu te amo Alex!
Ele ria, jogando seus cabelos
para trás, extasiado e tonto, beijando a minha bochecha e apertando a minha
cintura para manter-me longe do chão. Tudo explodia em The Cramps.
Esperava a eternidade, recebia o
fim.
O ambiente
descamou em formas geométricas, lascas em vermelho carne sugadas para o teto.
Debaixo da carapaça havia a máquina do tempo, porque eu estava de volta à sala
ensurdecedora do primeiro andar do galpão Victrola. O que antes era concreto
gélido e gasto tornou-se recortes de revistas e jornais falando sobre a morte
de Nancy. A janela retangular com barras de ferro deu lugar ao espelho manchado,
e a transexual no canto da cela que cuidava das unhas postiças com a lixa de
papel foi substituída por um armário escolar pichado com palavras chulas,
comuns nas músicas de rock. Senti o gosto da vodca e o beijo do meu amigo Ryan
no canto de minha boca. Um beijo despretensioso de quem muito agradece a sua
presença em um momento importante. Eu pisquei algumas vezes entregue a terrível
dor de cabeça, flashes de dois ambientes cruzados em um só, o burburinho de
conversas marginais traduzidas para a apreensão de uma madrugada aventureira.
Então meus olhos se fixaram abertos na ausência, como quando você perde o
controle do corpo e simplesmente flutua na gosma do nada, encarando o mesmo
objeto e se deliciando com a sensação de formigamento.
- Aqueles
bastardos vão cantar Ramones. Quem ainda gosta de Ramones? - reclamou Ryan com
despeito.
Provavelmente
esse é o tipo de som que se escuta quando disparam um revólver ao lado do seu
ouvido. Um constante "pi", a distância de áudio, os ecos e a estranha
assimilação com o oco.
- Todas as
músicas são iguais, cara. O show deles vai ser uma merda. - disse Jim,
afundando o rosto no pescoço da baixista do Rebel Girl.
Eles falavam
sobre o Bad Brain, a banda "inimiga" do Magic, sempre roubando
apresentações nas casas de shows e boates. Embora suas afirmações de ódio
fossem exageradas, eu estava convencida que uma grande parcela delas era
verídica. Rick, o vocalista, vestia com orgulho a camisa de babaca, encostado
meninas em paredes e passando atrevidamente as mãos em suas partes íntimas;
nada fora dos padrões quando se trata de um vocalista e sua base de
"fãs". O problema é que ele tinha um histórico impressionante de abuso
e violência, boatos abafados pelas vítimas menores de idade, que não deviam
estar onde estavam, típicas fugitivas de sexta-feira, ostentando a identidade
falsificada, que quebravam a cara e temiam a reação dos pais. Não me
interessava se Bad Brain era uma banda de merda ou a melhor do sistema solar,
eu odiava Rick Talbot como se ele tivesse cuspido em minhas batatas fritas.
Pam tirou um
saquinho da Branca de Neve do bolso da calça jeans, espalhando-a na mesa de
centro preta, suja de fumo, chips, papel de seda picado, cartas de baralho,
comprimidos e capsulas de cores variadas, como Xanax, Oxidona e Molly. Era o
primeiro saquinho de muitos que conseguiu com Gabe, que conhecia um ótimo
revendedor de drogas, sempre dando um desconto para grandes quantidades
compradas. Utilizando uma carta de copas para a divisão, Pam esperou Susie
enrolar uma nota e puxar a primeira carreira.
- Isso não dá
nem pra coçar o nariz. - Mike ficou de pé, a sudorese dos estimulantes
destacada na camisa cinza - Vou conseguir um pouco mais lá fora.
- Relaxa, Skinhead. -
puxei-o para que voltasse a ocupar o lugar ao meu lado no sofá de três lugares
- Temos o suficiente para a madrugada inteira.
Aquilo calou a
sua boca e depois de Jim enfiou o dólar na narina, dando uma puxada mais forte
que o necessário. Fui a última da fila, pensando que seria maneiro se Alex
estivesse com a gente, mas ele me esperava no bar, junto aos amigos. Eu ainda
guardava o meu saquinho e pensava em dividir com a banda.
Os shows
principais aconteceriam apenas no início da madrugada e até lá colocamos a
conversa em dia. O grupo dava os primeiros indícios da hora "fora de
órbita", ou muito silenciosos, ou muito falantes, comendo e vomitando, e
fumando haxixe quando precisavam diminuir o pique para em seguida voltar para a
montanha-russa. Percebi que não estava tão atrevida como antes, enfiando em
minha boca ou nariz toda bala e pó que me oferecessem. Sentia-me mais bêbada
que drogada, me perguntando se era maturidade ou medo da morte - desde que
Javier mostrou o vídeo da própria overdose criei alguns limites. Ainda assim
não pude evitar fazer um pequeno estrago no banheiro do camarim. Antes de
descer para encontrar Alex, levei dois dedos a garganta tentando esvaziar a
barriga. A dica passada por Ellie, irmã de Gabe, deu certo, recuperando um
pouco do fôlego do começo da festa.
Quando desci as
escadas para o térreo do Victrola, sustentando a pulseira branca que indicava
amizade com os músicos, e elevando a voz à barulheira do ambiente, reconheci o
que explodia nos alto-falantes como Babes in Toyland. Se
o inferno fosse uma casa de show, toda a extensão do galpão poderia ser
considerada o inferno. As pessoas não dançavam, elas esbofeteavam os outros em
meio a uma Síndrome da Mão Alheia coletiva, transformando tudo numa enorme roda
punk. Acostumados com o local, sabíamos que a área mais tranquila era em frente
ao palco, onde ficava a maioria das garotas. Enquanto estivesse uma banda de riot grrrl se apresentando ou tocando
nas caixas de som, ninguém se atrevia a tirar-nos de lá. Seguíamos as regras
dos anos 90, não tão rigidamente, em que as mulheres ficavam na frente e os
homens atrás, mas os que não quisessem fazer parte de toda a confusão também
podiam se juntar a nós.
Pam, Susie e Mike decidiram colar
no palco antes que o alvoroço para o primeiro show começasse. Assim segui para
o bar, intencionada a encontrar Alex. Ele conversava com os demais membros da
banda sobre o Queens of the Stone Age. Logo me entrosei no assunto, assumindo
que adorava o grupo e um tanto impressionada com os relatos protagonizados por
Josh Homme.
- Um dia você
vai conhecê-lo, prometo. - disse Alex, agarrando meu dedo mindinho com o seu,
de modo infantil e brincalhão.
O instante era propício para o
começo de tudo, começo de uma verdadeira aventura no Victrola. Com Pam peguei o
coquetel de pílulas e espalhei entre os amigos de Alex ao voltar para o bar.
Disse que deveriam começar a tomar suco ou água ao invés de bebidas alcoólicas.
Não queria ninguém nas manchetes de jornais e revistas baratas por ter
exagerado na noitada. Com o passar das horas os abordaria com outros estimulantes
e vez ou outra um simples cigarro de haxixe, para desestressar o coração. Pedi
para que mantivessem segredo e que não aceitassem drogas de outros, já que não
era seguro e eu não queria ser a culpada por qualquer coisa negativa que
acontecesse com o Arctic Monkeys.
- De acordo com as regras criadas
pelos próprios frequentadores do Victrola, se é a sua primeira noite, você
aceita tudo o que te oferecem. Caso alguém pergunte se é a primeira vez aqui,
digam que “não” para fugir da enrascada. – avisei, ao colocar os comprimidos em
suas mãos.
- E o que te ofereceram na sua
primeira vez? - perguntou Jamie, curioso.
- Um refrigerante. - dei de
ombros, contendo uma risada - Batizado de GHB.
- O que significa...? -
incentivou Matt.
- Que ele queria transar comigo.
E, sim, foi consentido. - com as mãos na cintura, percebi que estavam um pouco
assustados - Se quiserem manter as partes íntimas de vocês intactas, não
aceitem doces de estranhos, crianças. - brinquei e eles relaxaram, em uma
risada divertida.
Logo Rebel Girl entraria no palco
e, nesse tempo, continuamos uma simples conversa sobre dúvidas e mais dúvidas.
Nick e Jamie estavam um pouco receosos com tudo e com todos, o que despertava
certa graça. Precisei alertar que o banheiro do galpão era unissex e que não
servia apenas para necessidades fisiológicas, então facilmente pessoas
transavam dentro e fora da cabine, assim como havia muitos drogados desmaiados
ou tendo overdose estatelados no piso. Devido a isso, o número de fezes e urina
no chão do banheiro ultrapassava o suportável. Ninguém ligava para a boa bacia
sanitária, e os poucos que se importavam esperavam tanto por uma cabine vazia,
que uma hora simplesmente mijavam nas próprias calças.
- E os mictórios? Deveria ter
mictórios. - falou Jamie.
Alex deu uma risada, um pouco
pensativo.
- Se tornaram cadeiras para as
garotas que fazem sexo oral nos caras.
Dos três novatos, Matt parecia o
único realmente feliz e disposto a aproveitar cada momento da noite. Ele fazia
comentários engraçados sobre o que eu ou Alex explicávamos, dando risadas
curiosas de "quero experimentar". Provavelmente ele seria um dos primeiros
a pegar uma baranga para transar contra a parede de uma das cabines.
O Rebel Girl faria um show cover
de Bikini Kill. Por ser uma banda de puro riot
grrrl, a quantidade de mulheres na plateia era gigante e Alex, Matt, Nick e
Jamie, junto a Mike, eram um dos poucos homens no mar de "rosas".
Insisti para que seguissem comigo para perto de Pam e Susie, pois não queria
perder nenhum dos melhores detalhes de quando os comprimidos começassem a
bater.
Desabituados com o coquetel de
estimulantes, os efeitos atingiram alguns do grupo bastante cedo, lá para a
segunda música, “Tell Me So”. Até então eu estava de boa e não sentia nada. De
qualquer jeito, podia descrever com detalhes o que eles enfrentavam. Uma
sudorese intensa, os dentes rangendo e uma estranha necessidade de arrancar a
camisa graças ao calorão que dominava cada parte do corpo. Ao misturar o som
alto, os efeitos da droga e uma plateia alucinada, começamos a nos perder,
literalmente, uns dos outros. Os rapazes se afastaram de mim e fui espremida
contra Susie enquanto pulávamos e gritávamos a letra que estava na ponta da língua.
A maquiagem derretia, o cílio postiço desapareceu na primeira passada de mão no
rosto e os pés, pobres pés, eram esmagados por chunky boots. Ao fim do show, que durou quase uma hora, os joelhos
bambos se chocavam. Precisei ser puxada por Susie, que encontrou Pam, e assim
saímos do meio da multidão.
No bar, Alex ergueu a mão e veio
me buscar. Com uma olhadela para o grupo, não precisou dizer que queria ficar a
sós comigo. Ele carregava um sorriso natural no rosto. Diferente de mim, não
havia mudado muita coisa, além dos cabelos grudados na testa e do cheiro de
bebida na camiseta, como se tivesse se banhado em cerveja.
- Não permaneci até o final. -
explicou, ao afastar algumas pessoas para facilitar nossa passagem - Também me
perdi dos caras e fiquei procurando ao redor da plateia.
- Eles são grandinhos. Se
acatarem o pedido de não aceitar qualquer coisa, vão sobreviver. - falei, em
tom ameno.
Rondava pelo Victrola uma lista
de obrigações para o seu primeiro dia. Assim como eu, Alex a encarou do começo
ao fim. Entretanto, cumpriu-a por escolha própria, já que bati o pé dizendo que
se ficasse ao lado dos Eastern, não
precisaria seguir nenhuma regra de merda.
- Se lembra da regra número três?
– me apoiei no balcão, olhando sobre o ombro.
- Transe com um estranho no
banheiro. – respondeu prontamente, unindo as mãos em frente ao corpo sobre o
plano – Eu poderia te considerar uma estranha naquela época?
- Talvez. Nunca havíamos
transado... Algo de estranho rolava. – ergui uma sobrancelha, pensando na
primeira vez que fizemos sexo – Depois do banheiro você ficou muito mais
disposto a quebrar os vidros dos carros de um bando de gente desconhecida.
- Por que insisti em cumprir
essas regras mesmo? – Alex, esfregando a testa, deu um sorriso envergonhado,
beirando o arrependimento.
- É o Victrola, querido, apenas o
Victrola.
A anarquia era o que fazia a fama
do galpão. Mas a anarquia não era pura, cada um por si. No fundo de toda a
bizarrice que rolava lá dentro, havia uma lição sobre união. Os Mandamentos da Primeira Noite foram formulados e
administrados pelos próprios frequentadores do Victrola, que buscavam emplacar
uma identidade cada vez mais forte ao lugar. Embora houvesse uma média de cem
brigas por noite, grupos eram grupos, sempre se apoiando. Fui batizada de Eastern porque na minha primeira noite
no Victrola ninguém me ofereceu drogas injetáveis, como Pam, Susie, Gabe,
Ellie, Mike, Jim, Javier e Ryan, os principais Eastern. O nome nos foi dado pelo barman Hertel, um alemão que
adorava contar histórias de sua adolescência nos anos 70. Naquela época os
orientais não se misturavam com os demais drogados de Berlim, entregue cada vez
mais a drogas pesadas. Fumavam haxixe, puxavam pó, mas poucos se picavam.
Lembrando essa história, gelei em uma risada fria, e pensei em Javier e Ryan,
que semanas depois estavam vagando entre a heroína e a morfina, mandando um “foda-se”
para o nome do grupo, que logo caiu em desuso.
Alex beijou o
meu ombro e direcionou seus olhos escuros para os meus, esforçando-se para
decifrar o que flutuava em minha nuvem reflexiva. Menos dispersa, pude sentir o
toque do seu corpo atrás do meu, quando encostou o tronco em minhas costas,
apertando a barriga com os braços esguios e finos, amortecidos pela jaqueta.
Repetindo um demorado beijo em meus cabelos curtos, sussurrou uma pergunta
sobre o que eu pensava. Ignorei com uma risada arrepiada, infeliz por estarmos
no meio do bar, na frente de todos, inclusive dos seus amigos desaparecidos.
- Mantenha a
calma, Shaggy. –
aconselhei, enquanto Al me embalava de um lado para o outro, quem sabe animado
com os primeiros efeitos dos estimulantes.
- Vamos para um
lugar mais calmo. – sugeriu, colocando-me de frente para ele – Procure um canto
escuro e me espere. Vou pegar alguma bebida gelada.
Deixei-o para
trás acendendo a ponta do cigarro de haxixe de horas antes. Encostada na
parede, sob uma das enormes janelas fechadas com tijolos, fui acompanhada por
Alex logo depois, quando fazia um french inhale. Ele tomou o
cigarro e o apertou na boca, me entregando uma Sprite. Após o gole na bebida,
que de tão gelada desceu queimando, descansei a cabeça em Al, que passou o
braço sobre meus ombros.
- Como seria se
perdêssemos quase todos os sentidos? – murmurei absorta.
Mestres na arte
do assunto aleatório, Alex e eu já perdemos tempo falando até mesmo da trilha
sonora para o fim do mundo.
- Que grande
inferno seria isso aqui. – desabafando um sorriso, Alex segurou a lata de
Sprite distraidamente.
- Tenho uma
estranha impressão de que nos conheceríamos de outras formas. – franzindo a
testa, completei – E se o primeiro sentido descartado fosse o olfato?
- Não vejo muita
dificuldade. Rapidamente os demais sentidos tomariam seu lugar já que,
comparado aos outros, ele não é tão importante. – Alex fez uma pausa, me
olhando - Há algum nome para a ausência de olfato?
- Anosmia. Papai
teve uma colega que adquiriu anosmia após a diabete... Não faço a mínima ideia
do motivo, e o nome é baita esquisito.
- É.
- E o paladar?
- Seria
divertido. Imagina comermos coisas estranhas sem sentirmos o gosto? – ele riu,
fazendo uma careta – Comeria sem problemas um monte dessas comidas escrotas
daqui dos Estados Unidos.
- Não seja mau.
Audição?
- Falência.
Parariam de ouvir minha música.
- Finalmente um
ponto positivo. – alfinetei e recebi uma exagerada expressão de “o que?”
seguida de uma gostosa gargalhada – Acho que as coisas complicariam de verdade
nesse momento.
- Teríamos que
nos comunicar através de mímicas e bilhetes em papéis.
- O cinema mudo
faria muito mais sentido, embora fosse o de menos diante do colapso que a
humanidade estaria enfrentando. Vejo como um problema que passaria com
tranquilidade entre os responsáveis por manter a segurança no planeta. –
tagarelei um pouco séria.
- Por que sempre
falamos sobre o fim do mundo mesmo? É um modo inconsciente de preparação?
- Jesus está
voltando, querido. – brinquei, lançando a última fumaça de haxixe no ar,
totalmente atrapalhada pela rápida risada – Enfim, a visão.
- Talvez o golpe
mais forte. Nos perderíamos das pessoas que amamos porque não seríamos capazes
de achá-las, vê-las, ouvi-las, muito menos de reconhecer o toque. Pobres
baratas tontas. E o tato? Ele também sumiria?
- Não. Sabe
aquela esperança no fim do túnel? Seria o tato.
Calado, ele
encostou o nariz no topo de minha cabeça, enquanto pensava. Então inspirou
fundo, falando com a voz abafada:
- O toque
carregaria a responsabilidade das demais sensações. Veríamos, ouviríamos e
falaríamos através dele. – por um segundo, me encarou confuso – Como tudo isso
aconteceria?
- Uma epidemia
inexplicável. – dei de ombros – É assim que acontece nos filmes. O pontapé
inicial para o extermínio, a sobrevivência dos mais fortes, que retornam ao
primitivo. – joguei a ponta do cigarro no chão, apagando-o com a sola da bota –
Se perdido, volte ao começo.
Ele acenou um
“sim”, como se tentasse digerir a ideia.
- Vai começar o
show do Magic. – avisou, batendo, sem querer, os olhos no palco.
Estendiam a
bandeira da banda atrás da bateria e os meus amigos subiam na plataforma.
- Vamos nos
juntar a multidão. – segurei sua mão com firmeza – E dessa vez não quero
perdê-lo de vista.
Alex pareceu gostar do que disse
e minutos depois estávamos mais uma vez colados no palco. Ryan subiu como uma
quase diva, dessas que lançam beijos e acenam, com seus gestos afeminados que
encantam ambos os sexos. A primeira música foi “Like A Bad Girl Should” e, para
minha surpresa, duas drag queens surgiram na plataforma
executando danças sensuais nas caixas de som das partes laterais. Aquilo foi,
com certeza, uma loucura. Além dos muitos gritos e aplausos, as subidas de
palco para pular na plateia começaram mais cedo que o previsto, assim como as
rodas punks e quebradeiras de garrafas de bebidas. Alex tentava disfarçar a
expressão surpresa quando todos se aquietaram para ouvir o que Ryan tinha a
dizer no espaço entre a primeira e a segunda música. Das vezes que saiu comigo
e meu grupo, Al não havia presenciado uma apresentação do Magic.
- Boa noite, Victrola! - disse o
meu amigo, abrindo os braços magros e segurando o microfone na mão com uma luva
de motoqueiro - Eu gostaria de dizer que estou puta feliz de voltar para o
Victrola depois de vários malditos meses! - recebendo gritos de
comemoração em resposta, Ryan abriu um sorriso travesso bastante convencido.
Apoiando a perna na caixa de retorno, continuou - O Magic está de volta para
enrabar essa puta que nos expulsou de casa, por isso queremos o Victrola de
quatro, para enfiarmos nossas bolas em sua bunda! Vamos ficar fodidos de tanto
trepar!
- LET'S GET FUCKED!!! - bradou
uma das drags, no microfone de Jim.
Foi o suficiente para uma versão
mais agitada e potente de “Let's Get Fucked” começar. Eu nunca havia visto os
caras daquele jeito, realmente insanos ao jogar e chutar tudo sobre o palco.
Ryan, que não tinha noção sobre como mexer os próprios membros do corpo,
dançava em um choque elétrico, grunhindo a voz grave e ensurdecedora ampliada
nos caixas.
O show seguiu maravilhoso,
intensificado pelas drogas, que demoraram a bater, mas vieram com o maior gás.
E, para completar, a companhia de Alex, que finalmente se soltou. Em um momento
precisei gritar para ele o quanto o amava, sem a menor intenção de ser
romântica. Foi um desejo irreprimível de externar o quanto o queria bem e ao
meu lado.
Impressionada com as drags,
invejei a maneira que mexiam os quadris e ombros, estreitando-os para valorizar
os seios artificiais de silicone, assim como as mãos que deslizavam nas falsas
curvas. Elas incitavam o caos na plateia, que delirava com cada gesto obsceno
que faziam.
Com o termino dos covers de The
Cramps, que durou uma hora e meia, o Magic se despediu do palco recebendo
aplausos, gritos, palavrões, declarações de amor um tanto deturpadas e, acima
de tudo, os gemidos doloridos de pessoas que haviam curtido muito e agora
estavam esgotadas. Mas eu não sentia o menor cansaço, e poderia continuar com o
mesmo pique por tempo indeterminado. Alex demonstrava toda a sua ansiedade com
um sorriso deformado no rosto, como se linhas invisíveis puxassem seus lábios
para os lados. Com nossos olhos arregalados e dentes rangendo, sempre que
calávamos a boca por dois segundos, interrompíamos o silêncio para falar o quão
incrível o Magic era.
- Vou parar com a música... - Desabafou,
sua mão em meu ombro - Sou um desastre perto do Ryan.
Contive uma risada para não
demonstrar que concordava que meu amigo era muito melhor que ele em
apresentações.
Renovei a dose de estimulantes
com Efedrina e liberei umas pílulas para Alex. No banheiro, após fazermos
nossas necessidades no espaço entre a última cabine e a parede, mirando no ralo
imundo, puxamos um pouco de pó na borda da pia amarelada e com rachaduras. Era
um lugar agitado, de muita conversa, gemido e brigas, porque constantemente
alguém fazia a merda de roubar a droga de um desatento.
Nossas bocas secavam com facilidade
e fixamos ao lado da máquina de refrescos um longo período, comendo sanduíches
e batatas fritas, com uma fome tremenda, pouco preocupados com os enjoos
repentinos. Ficamos assim até o show do Bad Brain começar. Bebíamos sucos, às
vezes laranja, às vezes pêssego, e discutíamos pequenos assuntos inúteis.
Encostada na máquina, escondida pela sombra, Alex apoiava o seu cotovelo ao
lado da minha cabeça, falando perto de mim e, vez ou outra, depositando beijos
na bochecha. Houve um momento que, sinceramente, mandei todos irem ao inferno,
e o beijei como queria fazer desde o começo da noite. Ele retribuiu sem medo, e
agarrou a minha cintura com avidez, pressionando-me com rigidez até levar à
parede grafitada. A mão calorosa de Alex massageava as minhas nádegas, enquanto
meus quadris se moviam insinuantes. Quando sua coxa deslizou entre as minhas
pernas, algum machão de merda estragou o momento ao bater com firmeza na
máquina de refrescos, nos assustando. Alex o olhou com um ódio que nunca pensei
que pudesse ter. O homem, magrelo que dava dó, abriu um sorriso torto e
implicante, se afastando satisfeito por ter nos interrompido. Cumpriu a maldade
do dia, filho da mãe? Embora estivesse empolgada e com o coração a mil, seja
pelo remédio ou o amasso, seja pela mistura dos dois, foi sensato puxar Alex
para longe daquele canto antes que algum bicho o mordesse, se transformando em
um brigão irreconhecível, que iria trás do magricela. Ainda assim duvidava se
continuaríamos com o mesmo pique após a dose de cocaína no banheiro. Não muito
difícil perdia a vontade quando cheirava. Dessa forma, sugeri que entrássemos
no show do Bad Brain, e logo ele aquietou.
Rondei o Victrola toda a
madrugada, renovando os estimulantes, puxando um pó ou um fumo, comendo para
compensar a lazeira, conversando e, quando possível, beijando o meu companheiro
favorito. Nick e Jamie haviam se perdido de vez e parecia impossível encontrá-los
no meio do alvoroço que era o galpão. Já Matt achamos com meus amigos. Tempos
depois do show do Bad Brain, Ryan e Jim, junto a Pam, Susie, Gabe e Ellie,
estavam sentados no chão em frente à escada para o "camarim"
coletivo. Era quase 4h e os estimulantes, que perdiam o efeito, traziam uma
nova fase, a parte para baixo, em que toda a empolgação evaporava.
- Sentem aqui... - Pam bateu a
mão no concreto sujo, chamando a mim e a Alex - Como foi a noite de vocês?
- Tranquila. - respondi, me
acomodando ao lado dele e perto de Matt - E a de vocês?
- Eu tô ficando velha demais para
isso. - Susie riu, deitando a cabeça no colo da namorada - Por que não conta o
que andou aprontando, Matt?
- Duas garotas ao mesmo tempo no
banheiro... Agora entendi a história do mictório.
- Que garanhão! - brinquei, dando
um soco em seu braço.
- Queria estar sóbrio para ter
aproveitado mais. Elas eram realmente gostosas.
- Deixa pra próxima. Se houver
próxima.
- Hm... Quem sabe? Não foi assim
tão ruim, me saí bem até demais. - ele ironizou quase convincente - Vocês viram
Jamie e Nick?
- Não. Justamente os dois maricas
sumiram. - Alex, que abandonou o rosto risonho após o chega-pra-lá da máquina
de refrescos, falou com seriedade - Tô meio preocupado.
- Não quero ser mentiroso, dizendo
que está tudo bem e que nada pode acontecer, mas... - Ryan virou a garrafa de
cerveja, coçando os cabelos desbotados - O que a gente faz é o de menos perto
do que os outros fazem.
- Eles precisam esbarrar com os
malandros certos e aí sim vão se enfiar em uma sujeira daquelas quando
começarem a exigir que cumpram as regras da primeira noite. - completou Jim,
seguindo a onda de "meter medo" nos caras do Arctic.
- Não estão ajudando, beleza?
Então é melhor calarem a boca. - Adverti, lançando o dedo do meio.
- Por que não voltamos ao assunto
de antes? Essa preocupação ridícula não leva a nada. - debochou Ellie, uma
garota que transpirava negatividade com a sua grosseria - Falávamos de umas
groupies famosas.
- Sable Starr, Bebel Buell,
Pamela Des Barres... - contabilizei nos dedos - Nancy Spungen...! - Susie e Pam
me olharam com risadas. Com certeza Nancy era nossa favorita - Heather Young*,
Robin Michaels*...
- Não conhecemos essas. - minhas
amigas se entreolharam, confusas.
- Quando estávamos em Sheffield,
fomos ao cinema da cidade. Passava um documentário sobre Def Leppard. -
explicou Alex - Heather e Robin eram groupies da banda.
- Heather Young, claro! -
Ryan bateu na própria cabeça, como se tivesse se lembrado de algo - A fotógrafa
da banda, não é isso? Eu peguei uma garota que amava aquele tal de Steve Clark,
o Kurt Cobain dos fãs do Def Leppard.
- Dizem que a Heather namorou o
Steve. - dei de ombros, sem muita certeza.
- E Michaels é casada com Rick, o
baterista. - completou Alex, falando o que vimos no documentário.
- Isso sim são groupies sortudas.
- Ellie parecia impressionada - Estou pendendo mais para o azar.
- Mas as garotas eram talentosas.
Elas não se aproximaram da banda só porque tinham belos pares de pernas,
entende? Heather foi uma ótima fotógrafa e a Robin se tornou uma boa atriz. -
abri mais um sorriso para Pam e Susie - Aliás, pesquisem na internet sobre
Robin Michaels, ela faz exatamente o tipo de vocês.
- Hm, interessante... - comentou
Susie, um pouco brincalhona - Será a primeira coisa que faremos quando
chegarmos em ca... Aquilo não é o Mike?
Ao olhar para o lado, notei nosso
amigo correndo em meio às pessoas do galpão. Com os coturnos escorregando no
chão molhado, ele derrapou quase de joelhos até trombar no irmão Jim.
- Aconteceu uma merda! - alertou.
- O que foi que você aprontou
dessa vez, Skinhead? - perguntou Pam, acostumada com as pisadas na
bola de Mike.
- Bad trip. O Jamie... O amigo de vocês... Ele...
Afobado pela correria, nem mesmo
conseguiu terminar a fala. Também não interessava o que mais ele tinha a dizer,
já que eu, Alex e Matt demos um pulo ao ouvir o nome "bad trip" e "Jamie" numa mesma frase.
- Eu vou levar vocês até
ele.
Logo Mike recuperou o fôlego e
correu, sumindo vez ou outra entre os grupos de pessoas. Ryan, Pam e Susie nos
acompanharam no mínimo curiosos para saber o que estava acontecendo. Qualquer
coisa, absolutamente qualquer coisa que acontecesse com o Jamie seria
responsabilidade minha. Então comecei a me preparar para uma bomba.
Saímos do galpão e finalmente
chegamos ao estacionamento. De longe pudemos ver o que se passava. Jamie sobre
a caçamba de uma camionete segurando uma garrafa, esbravejando contra Nick,
como se o próprio fosse um monstro. Ele tentava de braços
erguidos acalmá-lo, pedindo para que largasse o recipiente de vidro e
voltasse ao chão.
- Que droga, Jamie, sai daí! -
Alex se juntou ao baixista.
- Porra, vão embora, eu não
acredito em vocês! Isso é tudo coisa da minha cabeça! - reclamou Jamie, batendo
a mão contra a testa, babando ao falar.
- Chega dessa mer... - Matt,
irritado, tentou subir na camionete e falhou miseravelmente quando o amigo
quebrou a garrafa de vidro a centímetros de seu rosto.
- Ninguém sobe no meu barco...
Ninguém! - com uma expressão psicótica, arrastou a voz em ameaça. Estava
decidido a ficar em cima do carro e a ferir qualquer um que se atrevesse a
tirá-lo de lá.
Talvez pensasse que fossemos
tubarões... Jamie acreditava que estava sobre um barco!
- Por favor, Cook, vamos para
casa! Você está com frio e medo, não é? Nós vamos cuidar de você, prometo. -
foi a minha vez de arriscar um apaziguamento.
Sem sucesso.
O guitarrista me encarou por
longos minutos, não piscando os olhos, os dentes rangendo e a mão trêmula com o
pedaço da garrafa. Distraído, mal percebeu Ryan subindo na camionete, bem atrás
dele.
- Sumam! - Jamie gritou, e assim
que acabou Ryan se jogou contra suas costas, derrubando-o no automóvel.
Os caras da banda pularam na
caçamba com pressa e, segundos depois, todos seguravam Jamie, que finalmente
largou a garrafa. No começo ele gritou e esperneou, depois simplesmente ficou
parado, chorando e tremendo, deitado de lado. Alex segurava suas mãos para que
parasse de arranhar as unhas no chão da camionete. As pontas dos seus dedos
estavam avermelhadas, quase sangrando.
- Não é melhor levá-lo para casa?
- sugeriu Pam, alarmada.
- Vou pegar o carro. - Alex
passou a responsabilidade de segurar as mãos para Matt e me encarou misterioso.
- Já volto.
Mesmo preocupada com Jamie,
decidi que deveria acompanhar Alex. Pensei na raiva que ele sentia por mim, na
noite divertida que voou para o espaço com a bad trip de um de se seus melhores amigos.
- Fomos inconsequentes. - falou,
procurando o carro que trouxe a banda - Fomos puta inconsequentes, Alice.
- Eles colocaram a própria bunda
na reta. - tentei me defender, ou defendê-lo, já que captei o arrependimento em
suas palavras.
- Porra, ele está tendo uma bad trip e você quer culpá-lo? - por um
segundo ele parou, me observando com chateação.
Bati o pé com força, chorosa. Estava
meio abalada por ter sido pega de surpresa.
- Desculpa, é que estou aflita. -
cruzei os braços, balançando a cabeça - Talvez o Victrola não seja um lugar
para o Jamie.
- É, acho que não. - ele
concordou, com as típicas mãos na cintura.
- Só ansiava saber como seria o
meu mundo e o seu juntos. - desabafei, envergonhada - Parece que não deu muito
certo.
Alex passou a língua entre os
lábios, desviando o olhar de mim. Estava pensativo, quem sabe controlando a
indignação dentro de si.
- O que aconteceu com o Jamie não
altera nada o que passamos hoje, está me ouvindo? Entre mim e você, vamos
guardar as coisas boas. - ele segurou meu rosto e ergui meus olhos para as suas
feições acolhedoras - Preciso ajudar o Jamie, mas se não tivesse rolado tudo
isso, queria terminar o dia ao seu lado, ao lado da garota que amo.
Foi o suficiente para me levar ao
chão. Por outro lado, segurei as lágrimas emotivas, algo completamente
complicado ao misturar a "depressão" pós-estimulantes e as palavras
carinhosas de Alex. Dei um beijo rápido e de agradecimento, segurando seu rosto
magro com delicadeza.
- Por favor, ajude o Jamie. -
sussurrei e o deixei ir.
Antes de entrar no carro, Alex me
lançou um sorriso cúmplice e apaixonado, o suficiente para diminuir a
inquietação em relação a ele. Por outro lado, fui tomada pelas dúvidas do que
havia acontecido. Voltei à camionete onde os meus amigos estavam em passos
bem vagarosos. Pensativa e sonolenta, finalmente comecei a sentir dores nos pés
e pesos nos calcanhares. Com as mãos unidas abaixo do queixo, lancei um beijo
no ar para Matt, que, mesmo preocupado com Jamie, carregava um rosto feliz, de
quem havia se divertido muito.
- Acho que está na hora de irmos
para casa. - Susie pôs o braço em meus ombros, balançando-me para que despertasse
- Vamos, Anne Boleyn.
Despedimos-nos dos demais amigos
que estavam mais cedo no nosso apartamento. Voltei para o Chevy, aborrecida com
o término da noite, sonhando com uma cama e um pouco de paz após uma notícia de
que Jamie estava bem. O desfecho para uma madrugada no Victrola tinha sido
quase perfeito, nós sobrevivemos sem passar por perrengues, mas ao mesmo tempo
aproveitando ao máximo na borda do limite. Pobre Jamie... Desde o início notei
que o Victrola não era a sua praia. E até tentei amenizar, só que não deu
certo.
Angustiada com a demora de uma
ligação, afirmando que ele superou a bad
trip, calculei a dimensão de um estrago, caso ele saísse com alguma
sequela. Não, não era assim tão fácil, terminar uma bad trip com marcas fixas. Das pessoas que conheci e já enfrentaram
uma, e me incluo nesse grupo, na semana seguinte estávamos a todo vapor
engolindo estimulantes, alucinógenos e antidepressivos. O que, afinal, havia
dado errado?
- Mike. Mike que fez tudo dar
errado. - exclamou Pam, assim que o Chevy saiu do Bronx.
Ela tentava não gritar de raiva e
provavelmente por isso demorou tanto a falar, controlando a temporária aversão
ao nosso amigo:
- Como assim? O que o Mike fez? -
perguntei agora atenta, interessada em como as coisas se perderam.
- Ritalina e LSD. Foi isso o que
aconteceu. - ela bateu o pé, irritada - Aquele merda adora misturar o que não
deve.
- Eu não... - dei um sorriso
incrédulo - Que... - foi a minha vez de bater a mão no carro - Todos eles
tomaram? Nick, Jamie, Mike?
- Ele disse que não, que Nick
recusou, porque só aceitaria drogas suas. Mas Jamie disse que não tinha
problema, que Mike era seu amigo e que podiam confiar. - Pam explicou, ficando
mais ereta - Encostei Mike na parede e perguntei antes de vir. A cara dele de
arrependimento acabou denunciando a burrada que fez.
- Se Jamie soubesse como o
Michael extrapola nas misturas, não ia dar metade da confiança para
ele. - concluiu Susie, que me lançou um olhar preocupado - Os caras mandaram
alguma notícia?
- Nenhuma... Até agora. - levei a
mão aos olhos, esfregando-os - Que isso não se transforme em algo maior.
- Não vai, Ali, pode ter certeza.
Vamos deitar em nossas camas e dar fim a essa noite. Amanhã quando acordar só
vai se lembrar das partes divertidas do Victrola. - ela pôs a mão em minha
perna, com um sorriso consolador.
Em suspiro, me deixei relaxar com
a cabeça em seu ombro:
- Espero, Su. Realmente espero.
Gabe nos deixou em frente ao
silencioso prédio. Se não fosse pela batida que recebi no braço e o dedo fino
de Pam apontando duas viaturas policiais, mal teria percebido os automóveis e
as sirenes coloridas bem a minha frente.
- Será que denunciaram o cara do
301? - questionei, passando a mão no carro branco e azul - O que bate na
esposa?
- Que ótimo. Ele merece um bom
companheiro de cela para espancá-lo sempre que ele se recusar a tirar a roupa.
- Pam sorriu como se tivesse contado a melhor piada.
- Perverso, Pamela, isso foi
perverso. - Susie segurou a namorada pela cintura e subiu as escadas do prédio.
Grogue, observei a sirene
girando. Balancei com suavidade de um lado para o outro, fixando meus olhos nas
luzes, hipnotizada, imaginando como seria cair para trás e me deitar
automaticamente no colchão velho sobre a cama.
Uma sombra. Uma sombra esguia e
elegante, misteriosa, irreconhecível. Um gato sobre duas patas escondido atrás
do poste, bem do outro lado da rua. Os efeitos colaterais davam seus primeiros
sinais. As alucinações começavam.
- Você não vem? - Pam voltou
afobada, colocando a cabeça entre as duas portas de entrada.
- Claro... - respondi, sem
retirar os olhos da silhueta - Claro.
Mamãe sempre foi muito
espiritual, dessas que recebem premonições ou pressentimentos. Perdi a conta da
quantidade de vezes que me ligou quando eu estava para baixo, seja por tristeza
ou por uma gripe pesada, uma febre de ansiedade... Também lembro quando ela
sentiu que havia algo de errado com seu corpo, meses antes de descobrir o
câncer. A explicação mais plausível seria a sua espiritualidade, a conexão com
um campo invisível que está além do nosso conhecimento. Até hoje não sei dizer
se considero tais avisos como algo bom ou ruim, mas a verdade é que herdei um
pouco da sua intuição natural, que aparece para me avisar coisas ruins e poucas
vezes boas. O pressentimento se manifesta com sensações estranhas na cabeça e
nuca, se espalhando para ouvidos e olhos. A visão fica enegrecida e cilíndrica,
dificultando minha locomoção. Trombo em pequenas coisas postas no chão, como
escadas, batentes, cabideiros, sapatos. Seguro-me em qualquer lugar, com medo
de quedas e desmaios. Então se torna crescente, tão alta quanto tambores
perseguindo algum outro tipo incompreensível de som. Os pressentimentos são
fortes, desses que demoram a aparecer, mas que quando aparecem não me deixam em
paz, porque nunca são claros o suficiente a ponto de formar uma imagem objetiva
e nítida.
Quando entrei no corredor do
apartamento em que morava e vi a nossa porta aberta, não foi preciso grandes
sinais espirituais para entender o que se passava. Mesmo assim andava com
cuidado, um tanto temerosa, devido ao coração acelerado e a estranha pressão na
nuca. Os carros policiais não serviam para o vizinho espancador. Eram para
nós, as três garotas alternativas e promíscuas. Ninguém havia denunciado o
homem do 301, mas alguém havia nos denunciado, o que era muito, muito pior.
- Pamela Allen e Susan Page? -
inquiriu um dos policiais. Minhas amigas ergueram as mãos. - Ambas estão presas
por porte ilegal de drogas.
Num piscar de olhos, dois
brutamontes as seguraram pelos ombros, empurrando-as bruscamente contra a
parede do corredor e prendendo seus pulsos ossudos com as habituais algemas,
que só havia visto em filmes e lojas de brinquedos sexuais.
- Não podem invadir nossa casa
dessa forma, precisam de uma autorização judicial! - reclamou Pam, a voz
esganiçada, o rosto pressionado contra a parede.
- Qual o seu nome? - eu,
encolhida entre a porta e o corredor, mal compreendi o que a policial disse a
mim - Qual o seu nome? - repetiu, dessa vez mais alto.
- A-Alice... Mu-M-Murray. -
gaguejei, olhando-a com receio, e puxando apressadamente minha identidade do
bolso da saia.
- Abra braços e pernas para a
revista.
Era difícil manter a concentração
diante da briga que Pam e Susie levavam com os demais policiais. Tudo tomava um
nível azarento, como se tivessem lançado a magia negra da encruzilhada sobre
nossas cabeças. Profissionalmente a policial passou as mãos em meu corpo em
busca de novas drogas. Imaginei que tivesse sido abordada por último, já que
todo o haxixe que tinha dentro do meu quarto levei para o Victrola. Os
estimulantes que usamos eram responsabilidades de Pam e chegaram ao fim muito
antes de sairmos do galpão.
- Cocaína. - ela falou, ao
atingir a abertura das minhas botas e tirar o saco quase vazio do pó que usei
com Alex. Sussurrei um "merda". - Essa aqui também está sob efeitos
de entorpecentes.
A policial apontou para os
próprios olhos, como se falasse das minhas pupilas para os amigos. Tão brusca
quanto os outros, empurrou meu corpo contra a parede, onde bati meu rosto com
força, meu nariz chocando contra o plano, possibilitando o sangramento, que não
veio. Enquanto prendia meus braços, ela recitava:
- Departamento de Polícia de Nova
Iorque. Tem o direito de permanecer em silêncio; tudo o que disser poderá ser
usado contra você no tribunal. Tem direito a um advogado...
Ao nos levarem pelo prédio,
conversavam entre si sobre a denúncia anônima de drogas traficadas no
apartamento. Nosso apartamento. Aparentemente, quem nos denunciou falou sobre
brigas e tiros, por isso a invasão sem ordem judicial. Na revista, em busca de
criminosos, armas, estoques grandes de drogas, encontraram os haxixes de Pam e
Susie escondidos em seus quartos. As meninas já falaram como as leis antidrogas
de Nova Iorque eram rígidas, mas não esperava que fosse a esse ponto. A
quantidade de haxixe guardada era minúscula, porque, assim como eu, levaram
grande parte para o Victrola. Eu ainda me sentia muito burra por não ter me
livrado do saco quase vazio de cocaína. O pouco que restara mal dava para uma
carreira. Caso liberada ou apenas interrogada, seria muito mais fácil ajudar
Pam e Susie do lado de fora. Sequer conseguia prever nosso destino, estava
realmente apavorada, pensando em uma forma de ligar para Alex ou Matt. E ainda
havia Jamie e sua bad trip.
O "pi" inicial
assolou meus ouvidos. O cenário duplicou, passado e presente, buscando a
superação de um sobre o outro. O corredor do apartamento descamou, lascas de
fundo vermelho carne da cela da prisão caíram graciosamente do teto, tomando os
espaços de recorte geométrico, devolvendo a realidade, não o sonho próximo ao
amanhecer. Os gritos de minhas amigas foram abafados, as dores dos empurrões e
das algemas amenizaram. Fui a primeira das três a ser jogada em um dos
carros da polícia. Encostei a testa contra o vidro gélido, resfriando a
superfície quente de febre e suor, batalhando para não chorar. Bastava a
primeira lágrima sair para que enfraquecesse de vez.
Cismada com a sombra, buscava uma
interpretação coesa. Um sorrisinho delicioso e vencedor fez meu estômago
embrulhar. Os olhos de gato brilharam na escuridão, estampados de malícia, uma
malícia disfarçada pelas atitudes doces e
expressões simpaticíssimas de quem sabe atuar frente à mídia. Alexa
Chung nos denunciou. Revelava-se cada vez mais, tomando distância do poste para
observar o carro com espontânea curiosidade, as mãos guardadas nos
bolsos do luxuoso sobretudo. Assim, me tornei um entretenimento barato
para Alexa, que se divertia com a decadência da inimiga.
Em uma das celas do Departamento
de Polícia de Nova Iorque, sucumbindo mais e mais ao ambiente fedorento e
lotado, esqueço de quase toda a noite do Victrola graças a marca de Alexa e seu
sorriso vitorioso de merda. Resistia a me deitar no chão e chorar como uma
fedelha porque pensava incessantemente na retribuição ao jogo sujo da It Girl.
Quase podia sentir meu sapato esmagando lentamente seu pescoço magro e longo de
modelo. Quase o senti quebrar debaixo da minha sola. Estava na hora de
persuadir Alex a fazer sua escolha.
___________________________
*Heather Young e Robin Michaels são personagens
fictícias da fanfic Photograph, da banda Def Lepard. É uma história maravilhosa
escrita por minha amiga Jennifer e pode ser encontrada no Social Spirit.
Nota da autora: esse capítulo foi o mais pesado de
todos os digitados dessa fanfic. Além de escrever muito, precisei pesquisar
sobre as drogas e a política antidrogas de Nova Iorque. Sem falar que ele foge
um pouco do padrão de ML, já que trata realmente de uma narrativa de fatos, não
só os comentários mentais da Alice - como normalmente acontece. Espero que
tenha valido a pena as semanas sem postar e desculpa aí qualquer coisa errada
ou abaixo da expectativa, porque cara, eu já tava pirando com esse capítulo
hahaha!
A próxima postagem de ML – Humbug será a última
dessa fase. Vou começar a me dedicar a minha nova fanfic, Not About Love. A sinopse pode ser encontrada aqui e esse é o primeiro capítulo.
Comentem aqui e em NAL, tudo bem? Beijos enormes para vocês ♥
Nossa, valeu muita a pena esperar esse com certeza foi um dos melhores capitulos, acho que vc conseguiu descrever muito bem essa fase sombria do alex e da alice, admito que essa jogada suja da alexa me deixou surpresa(em um ótimo sentido) quem é que gosta de coisas previsíveis né?
ResponderExcluirUma perguntinha, vc disse que o proximo capitulo será o último dessa fase, quer dizer que terá outra? porque eu ia AMAR, então não me iluda please!!!!
Bjosss <3 E que o próximo capitulo de ML não demore tanto amém.
Sério que você achou esse um dos melhores capítulos? Fiquei com um super medo dele não passar tudo o que eu queria, de algumas vezes soar exagerado e em outras superficial. Como você é uma leitora sempre presente nos comentários, saber que o capítulo te agradou me deixa bem feliz e muito mais tranquila quanto a qualidade dele hahaha
ExcluirEu não tinha a intenção de colocar uma participação desse tipo da Alexa, mas como é o final da história precisava de algo "diferente", não é? Ainda bem que foi uma surpresa boa!
Então, tenho alguns planos para Misfit Love que não posso falar, mas que provavelmente ainda vai demorar para se realizar e que talvez nem se concretize. Mas vamos cruzar os dedos para que tudo dê certo, ok?
Obrigada pelo comentário <3 e o último capítulo ainda não comecei porque estou sem inspiração ): mas juro que um dia sai e espero vê-la aqui nesse final.
Beijos enormes, Rúbia xx <3
Eu meio que comentei com você, mas repito: O Ryan é MEU. E Al e Alli somos nozes kkkkkk
ResponderExcluirBjos, Babs.
O Ryan é seu e o Aaron e Sharon são meus <3 acho que essa divisão é bem justa kkkk
ExcluirBeijos Babsinha xx
Eu to é morta com esse cap, também quero matar a Alexa! HAHAHAHA tá liiindo, eu adorei. Eu nem acredito que já está acabando. Essa fic será pra sempre meu amorzinho <3
ResponderExcluirOwn, que lindo! Pois é, Alexa é um pouco mais "malvadinha" do que aparenta hahaha coisas de uma mulher ferida.................
ExcluirObrigada pelo comentário, viu? Até o último capítulo! xx <3
MEU DEUS, eu tava a dias pra comentar essa belezinha,
ResponderExcluirSÉRIO, foi o capítulo mais chocante e MELHOR EVERR, consegui sentir na pele a cada trecho, cada sensação deles, e até fiquei com raiva momentânea da Alexa hahahah
Cê é genial, sabes o apego que tenho pela Ali, e toda essa maravilha <3
Mal posso esperar a próxima att,
Beijoss, Isa
Isa, que saudades de você aqui!
ExcluirEu ainda estou chocada que tenham gostado desse capítulo, acredita? Estava tensa porque ele foi complicado de fazer e eu fiquei pensando "nossa, tá tudo errado", mas vocês são uma linda e tiraram esse medo de mim hahaha
Ainda bem que foi uma raiva momentânea, porque não quero ninguém aqui com um ódio mortal da Alexa!
Obrigada por ter o trabalho de comentar, deixar sua opinião - que é importantíssima! - e até a próxima atualização <3
Beijos enormes pra você xx