-
Estou bem, querida, não precisa se preocupar comigo.
-
Impossível não me preocupar.
Há
alguns dias minha mãe finalmente fizera a cirurgia para retirada do câncer. Sua
recuperação, de acordo com o médico, estava sendo rápida. Ainda assim, para
mim, tão longe de casa, separadas por um imenso oceano, sentia-me extremamente
preocupada com a sua saúde, como se minhas ligações pudessem diminuir as dores
dos pontos.
-
Como está, hm? Tem se alimentado direito? – ela perguntou sonolenta. Tomava
remédios que a faziam dormir o dia inteiro.
-
Como sempre. – sorri ao dar de ombros, dentro da cabine telefônica – Preciso
ir, estão me esperando. Tem certeza que está tudo bem?
-
Vá se divertir e não perca tempo pensando em como estou, Alice. Se algo grave
acontecer... Saberá, uma hora ou outra. Mas vamos torcer para o melhor.
-
Ok, mãe. Até amanhã.
-
Até, querida.
Acendi
um cigarro assim que desliguei o telefone. Do lado de fora da boate famosa nos
80 e adaptada para os tempos atuais, o som alto de synthpop expulsava os gatos
da frente do estabelecimento. Meus dedos tremiam com o frio. As unhas de
tamanhos diferentes, com esmalte descascado e tesas como garras, levavam o rolo
de nicotina aos lábios de batom preto.
"Você foi, certa vez, suficientemente bom para viver sozinho" sussurrei, lembrando do poema Outra Cama, do Bukowski. Entrei na boate abafada esperando que as batidas irritantes de Alphatown cessassem. Apenas quando cheguei às mesas do canto, ao lado da bancada do bar, que um homem de cabelos bagunçados, um tipo mal elaborado de Dizzy Reed, gritou que a banda Magic subiria ao palco. Meus amigos, mais uma penca de gente que dançava alucinada no meio da pista, ergueram os braços berrando palavrões e comemorações.
Magic era o nome da bando do Ryan, um colega de turma da Universidade de Nova Iorque. Viciado em synthpop e rock progressivo, era uma mistura de Steve Clark e Robert Plant, seja de aparência ou vida turbulenta. Adorava resmungar que preferia cantar Red Flag a a-ha, mas não tinha alternativa, já que o público só conhecia a segunda, que era uma grande modinha.
- Ei, vamos para frente do palco. - sugeriu Michael, dando um sorriso bobo.
- Aquieta o facho, Skinhead! Sabemos que Ryan não curte garotos. - brincou Pam, numa alfinetada venenosa.
Comentava-se pelo grupo que Mike se declarara para Ryan e o vocalista do Magic deixara o caso aberto, sem confirmar ou negar.
- Vamos ver o que rola. - disse o rapaz de cabelos raspados e piercing no lábio inferior.
Com empurrões mal-educados, caminhamos para a frente do palco, onde um aglomerado de gente se espalhava com seus corpos desajeitados, dando cotoveladas e mãozadas em quem estivesse por perto. Acostumada, sabia que nessas horas o máximo que podia fazer para me manter segura era erguer os braços e deixar ser levada pela onda feroz dos jovens bêbados e drogados. Não tinha a mínima ideia do que merda o Magic cantava, esses americanos que amam o leste-europeu, mas com certeza era melhor que a banda do final de semana da Victrola, uma imitação quase cômica de Sex Pistols.
- Vou ao banheiro. Alguém acompanha? - gritei, logo após Jim, o guitarrista, cuspir cerveja nas pessoas ao meu lado.
Os outros não me deram ouvidos, já que Mike subira ao palco, preparado para se jogar nos braços da plateia. Vazei antes que tivesse que carregá-lo como uma idiota. Sua maneira tola de chamar a atenção do Ryan com certeza o faria cair no conceito do amigo ou, levando em conta o tamanho do ego do vocalista, Michael estava no caminho certo.
- É da boa? - perguntei ao passar alguns dólares para a Drag Queen no fundo do banheiro unissex - Aquela do final de semana não bateu nada.
- Porra, Sininho, vai me queimar para a clientela? - resmungou Bebe Needles, tentando não me arranhar com suas unhas postiças.
Dei de ombros. Não queria entrar numa discussão que, se fosse para a Branca de Neve ter um efeito melhor, não faria a mínima questão de pagar mais caro pelo produto, ao invés de dar uma mixaria por aquela merda.
Tranquei-me numa das cabine que cheirava a urina e fezes, uma mistura quase tão comum nesses banheiros que no primeiro momento nem fiquem enjoada ao empurrar a tampa com a ponta dos dedos. Com uma lâmina que levava no bolso da carteira, prepararei a cocaína sobre a caixa da descarga, enrolando uma nota de um dólar, puxando o pó pelo nariz e fungando logo em seguida. Terminei as carreiras e me deixei cair no chão. Anestesiada, feliz, experiência fora do corpo e mil sensações como se fosse um fantasma. As paredes pretas eram brilhantes e o cheiro de bosta me fez vomitar ao lado da lata de lixo.
*
* *
Uma
semana. Há uma semana ninguém batia em minha porta com os olhos escondidos por
trás da franja. Uma semana. Uma semana sem ligações ou cartas. Ele gostava de
cartas e eu guardava dez delas numa caixa de chocolate amargo.
No
dia seguinte à boate me acordei com uma ressaca infernal. Não sabia onde
estava, nem sequer consegui decifrar que cheiro era aquele. Descobri mais tarde
que aquele mofo no topo da parede era da sala de estar do apartamento do Ryan.
Todos estavam lá, espalhados pelo chão, exalando uma mistura de cerveja e
maconha, como sempre. O cheiro que saía
da cozinha não lembrava ovos, e o café da manhã, embora já passasse do
meio-dia, estava longe de parecer o que realmente era, um erro de omelete com
bacon.
Ao
acender o primeiro cigarro e ligar a televisão de 14 polegadas num canal de
séries policiais, bateu o tradicional sentimento de remorso, devido a mais uma
vez extrapolar os limites. Deveria estar aqui a trabalho, mas, veja bem, ando
curtindo boates, usando drogas e fazendo parte de grupos de arte que o povo tacha
como comunista. Um dia desses descobri que Pam mal sabia quem era Che Guevara.
Enfim, como era domingo, e estava livre das atividades da faculdade, esse
remorso durou tempo o suficiente para que eu corresse para o apartamento,
tomasse um banho, trocasse de roupa e pensasse sobre a vida. Esperei que Alex
fosse me visitar à noite, mas nada, continuando assim pelos próximos dias.
Tomei
o hábito de, sempre que tivesse horário livre, passear no Central Park. À
noite, às 6h da manhã de uma segunda, ou de 14h da terça, eu comprava um café e
andava pelas vielas de pedra, com esquilos arteiros que pulavam as cercas de
metal para pegar comida. Às vezes ligava para minha mãe, outras para o Matt.
Eles eram minha válvula de escape. E, ao falar com Matt, esperava que em algum
momento citasse o Alex, mas era uma espera em vão. Nem mesmo tinha certeza se o
cara sabia de algo entre a gente.
Susan,
a namorada de Pam – nós três dividíamos o apartamento -, sugeriu que fizéssemos
uma reunião em casa para mostrar os novos curtas independentes de uns amigos próximos.
Jim, irmão de Mike, estava estrelando um deles, como um autista que se apaixona
por uma antiga atriz de filmes, ou qualquer coisa do gênero. O problema era que
ninguém tinha um retroprojetor. Incumbiram-me de encontrar um e assim eu
estaria livre da cota para bebidas. A única pessoa que conhecia que poderia me
emprestar era Alex, pois vira um pelo estúdio de gravação abandonado numa mesa
empoeirada.
Após
uma das aulas mais entediantes da Terra, que não ensinava nada de novo, tomei o
metrô até o outro lado da cidade e andei algumas ruas até a gravadora. Tentei ligar
para Alex, avisando que o visitaria, mas sempre caía na caixa postal, levando a
me perguntar se era de propósito ou não as ligações rejeitadas.
Poucas
vezes fui ao estúdio de gravação, porque a banda saíra de Nova Iorque assim que
cheguei. Nesse tempo me dediquei ao curso, às instalações e foi quando me
aproximei de Alex. Matt me dissera que, como eu ainda não havia conquistado a
confiança do vocalista, deveria empenhar o meu papel com mais afinco. Então
marquei algumas reuniões para que pudéssemos conversar e ele me contasse como
imaginava o CD. Fiz uns rabiscos, sem intenção de usá-los para o projeto,
apenas uma maneira de mostrar a ele que meu trabalho era de qualidade,
independente de sua cara feia e de seus resmungos sobre Arte Contemporânea.
Semanas depois Alex assumiu que tudo não passou de implicância porque ignorava
a importância da minha aproximação, mas tinha que dar o braço a torcer, eu era
diferente do que imaginava. E, sim, ele gosta bastante de Arte Contemporânea.
Precisei
falar com algumas pessoas até chegar a sala reservada durante toda a tarde para
o Arctic Monkeys. Bati na porta, vendo-o através das janelas de vidro. Nunca me
ouviria com os fones de ouvido e a guitarra em mãos. A porta destrancada permitiu
minha entrada silenciosa. De certa maneira ainda me envergonhava ao ficar em
sua frente, e no momento parecia que invadia seu mundo, sem permissão para
fazer isso. Ele ergueu os olhos, confuso. Cobertos pela meia-luz que saía das
lâmpadas ao redor do espelho, este instalado ao longo do sofá de tom quente,
tomamos uma coloração alaranjada, misturada as sombras pretas da sala pouco
iluminada. Alex retirou os fones, pondo-os no encosto da cadeira. Era uma
visão. Uma silhueta embaçada. Um desejo ou uma angústia. Tinha como sorrir
diante do seu rosto assustado?
-
Ei... – disse, colocando as mãos nos bolsos frontais da calça jeans – Que
surpresa!
Cruzei
os braços, em defensiva. Caso estivesse com saudades, caso quisesse me ver, me
receberia com receptividade e não com infelicidade.
-
Desculpa aparecer assim de repente, mas tentei te ligar e caía na caixa postal.
-
É, hm, acho que o sinal não pega muito bem aqui.
Mentira.
Muitas vezes trocamos telefonemas enquanto ensaiava suas melodias repetitivas e
de letras babacas. Grande merda, Alice, correr atrás desse enorme prejuízo.
-
Como não quero te atrapalhar mais do que atrapalhei... – espero que capte a
minha indireta, senhor Turner – Prometo não demorar mais que o necessário. – ele
confirmou com a cabeça, sem demonstrar a mínima vontade de me corrigir – Será
que você tem um retroprojetor para me emprestar?
Um
sorriso aliviado brotou de seus lábios secos. Alex balançou a mão desajeitadamente,
não intencionado a mostrar realmente alguma coisa. Ele andou até uma das mesas
no canto da sala, empurrou vários papéis do que pareciam ser letras de músicas
rabiscadas e trouxe para mim um enorme aparelho encapado.
-
Mais alguma coisa, Ali? – e sua expressão era falsamente prestativa.
Ao
encará-lo, meus olhos se estreitaram e meus lábios se entreabriram. Não
consegui disfarçar o porte de julgamento que obtive.
-
Apenas isso. Obrigada. – respondi, dando as costas.
-
Ei, não vai me convidar para seja o lá o que estejam aprontando?
Parei
por um segundo, o peso nos braços impedindo que eu me voltasse de vez para ele.
-
Sabe o endereço, sabe o que normalmente fazemos... Bem, para quê um convite
formal, não é mesmo? Já entrou naquela casa vezes demais para se importar com
algo tão pequeno.
Triunfante
ao vê-lo murchar como uma folha sem água, saí da gravadora ignorando as
perguntas do recepcionista sobre o retroprojetor pertencer a empresa. Ora,
Alex, precisava pagar de engraçadinho?
* * *
N/A: uma postagem antes dos shows para deixá-las animadas. Espero que todo mundo se divirta sexta e sábado ♥ Para as meninas que não vão, não fiquem tristes! Com certeza essa banda terá uma longa carreira e outros shows acontecerão no nosso país, quem sabe até em cidades muitas vezes esquecidas na rodada de turnês. E, por fim, vamos torcer para que o Arctic Monkeys termine a tour do AM da melhor forma possível.
Espero que tenham gostado da atualização e, por favor, comentem! Esse é o modo mais eficaz de empolgar uma autora, nunca se esqueçam disso.
Até a próxima - Bia xx
Thaís passando por aqui! Olha, eu acho quase impossível ninguém gostar dessa atualização. Pelo que já interagimos, você sabe que a Alice é uma das minhas PPs favoritas, então meio que nesse capítulo encontrei mais motivos pra manter a menina nesse posto, porque olha, ela é um universo de alternativas a ser explorado. E esse capítulo começou super bem, extraindo os possíveis elementos da vulnerabilidade dela, algo que está muito além do Alex. Enfim, sou toda expectativa pro próximo capítulo, já imagino o Alex dando as caras no esqueminha cult da Al com os amigos e criando caso, porque ele é adorável e insuportavelmente cínico nessa sua história! Amei as referências literárias e musicais que você deixou em alguns parágrafos, consigo recriar fácil a ambientação da fanfic na minha cabeça. Ansiosa pelo que ainda está por vir.
ResponderExcluirBeijos, bom show e tomara que os meninos do AM te inspirem a escrever mais vezes!<3
"Ele é adorável e insuportavelmente cínico nessa sua história" melhor descrição do Alex na fanfic kkkk
ExcluirObrigada pelo comentário e algumas partes dele estamos conversando no ask, por isso não quero ser repetitiva, ok? Mas seria muito engraçado o Alex criando caso na festinha cult e depois se arrependendo, jogando culpa na bebida.
Enquanto estava no Rio senti uma saudades imensa do meu computador e do word. Assim que saí do show queria passar o resto da noite digitando coisas na fanfic que talvez fossem influenciassem de forma negativa a história, mas meio que eu tava precisando desabafar. Como não tinha lugar para escrever, guardei a inspiração para agora e estou usando-o para completar o capítulo 4.
Até a próxima atualização Thais <3
- Bia
Humbug é uma das minhas fics favoritas do site apesar de ainda estar no secundo capitulo, vc escreve MUITO bem, parabéns mesmo!!!! To aqui super ansiosa pro proximo capitulo!
ResponderExcluirObrigada Rubia! Posso ter entendido errado, mas ficou parecendo que você começou a acompanhar minha história por Misfit Love - Humbug. Caso sim, quero te informar que essa fanfic é um spin-off da história Misfit Love 1 que está completa aqui http://arcticmonkeysfanfics.blogspot.com.br/2014/06/misfit-love.html
ExcluirSe você já leu, só é ignorar o que disse e continuar com Humbug.
Até a próxima atualização. Beijão!
- Bia xx
Biaa! Eu já não sei mais o que comentar. Termino o capítulo desesperada pelo resto... Sua estória é tãão boa e tão envolvente, meu Deus. Adoro o seu jeito de escrever e AMEI a cena da gravadora. Que Alex filho da mãe. O pior é que a cena foi tão real na minha cabeça que me incomodou o fato dele não estar nem aí para a Ali. O final com a resposta dela foi trinunfante. Uhuul hahaha
ResponderExcluirBeijos, Steph.
O que acho mais divertido no casal "Alix" é que o Alex sempre acha que é o rei da coca preta e chega Alice e corta as asinhas dele. Mas tudo tem um motivo e talvez o Al também tenha o seu... (Momento mistério).
ExcluirAté a próxima atualização, que talvez aconteça antes da sexta-feira.
Beijos Steph <3
- Bia xx
Amando cada atualização sua. Sigo acompanhando na maior ansiedade, beijos. Luísa ♥
ResponderExcluirObrigada pelo comentário e por acompanhar a fanfic, Lu ♥
ExcluirBeijos!
- Bia xx
CHEGUEI HEIN, ESTOU NO PARAÍSO!!
ResponderExcluirVim dizer que amei as referências musicais e culturais desse capítulo, synthpop e suas maravilhas <3 é bom ver o outro lado da vida de Alice, fora do âmbito "Alex Turner", seus amigos e cotidiano. Torna a personagem mais crível, interessante de acompanhar. E esse final foi massa, mostrando que ela ainda tem seu orgulho e bota moral nele hUEHUEHE
Ah, e você está escrevendo muito bem. Suas metáforas são lindas de acompanhar. Beijo do seu Benny que não é do fandom, mas aprecia todo tipo de boa história <3
QUE ABUNDÂNCIA MEU IRMÃO!
ExcluirVocê tinha que amar, já que é a sua cara esse tipo de coisa, que inclusive serviu de base, como comentei com você e tal kkkk
Alex fica achando que está por cima da cocada preta, queridinho, olha para a Alice e chore kkkkk
Obrigada, Benny, é sempre bom ler comentários assim, principalmente alguém com baixa autoestima de escrita como eu <3 digo o mesmo da sua história do Def, que não sou do fandom, mas acompanho porque a autora é foda.
Beijos!
- Bia
Bom, acho que já estamos conversando sobre este capítulo paralelamente, mas me deixe ressaltar, sua narrativa é foda e quando eu crescer quero escrever igual a você!
ResponderExcluirBjos, Babs.