Quando
descobri o que era a tão discutida “apropriação cultural”, decidi que não podia
continuar com o meu emaranhado de cabelos apenas por estilo e praticidade. Com
esforço convenci Pam e Susie a me ajudarem com os dreads. Depois de toda uma tarde puxando rolos e mais rolos, soube
que meu cabelo estava completamente estragado. Aceitei a opção de Susie e
corajosamente permiti que Pam fizesse algum corte em mim. Mais tarde, na
reunião chamada de Curta os Curtas, um nome idiota, eu sei, surpreendi os meus
amigos ao aparecer de cabelos curtos e com vestes limpas, um tanto delicadas
comparada às antigas, sempre sujas e rasgadas. O reflexo do espelho quase
remetia aos tempos de boa índole em Sheffield.
A
reunião foi menos calorosa do que imaginei. Acostumada a todos os tipos de
gente entrando e saindo do apartamento, fiquei impressionada ao perceber que o
número de pessoas cultas e asseadas no chão da sala de estar, passando os
baldes de pipoca de umas para as outras, era maior que os dos desajeitados
bêbados que odiavam banho. Os mais chatos reclamavam, alegando que a companhia
perfeita para um bom filme era chá ou café, que distraíam menos que qualquer
tipo de comida ou bebida gelada. Uma grande besteira, que gerou gargalhadas por
sua tamanha idiotice. Após as duas horas seguidas de curta, colocaram o vinil
de Los Lobos trazido por Javier, e começamos a discutir o trabalho dos nossos
amigos. Os sonhadores assumiram que gostariam de inscrever os filmes no
Festival de Cinema de Tribeca, um dos mais populares em Nova Iorque.
Acomodada
no braço do sofá, aguardei por uma eternidade o ápice da noite. Alex
atravessando a porta sempre aberta do apartamento, segurando a minha mão,
levando-me para longe daquela barulheira filosófica, trancando-nos em meu
quarto, rasgando a minha roupa, sussurrando desculpas enquanto me consumia com
o seu sexo. Nada acontecera. Tudo seguira numa linearidade tediosa. Depois de
1h da manhã sabia exatamente como a madrugada terminaria. Munida constantemente
de uma garrafa de cerveja, dedilhei sobre a minha cabeça as possibilidades de
uma novidade que nunca se cumpriu.
O
passe livre para a estrada que o afastaria de mim estava carimbado, assinado e
autenticado por meu espírito inquieto. Seria um grande favor pôr um ponto final
numa história que regava uma árvore de caos, que em algum momento os galhos
estapeariam a cabeça de inocentes e as raízes fora da terra dariam tropeções
nos desavisados. A minha coragem quando o encontrei na gravadora era
completamente fictícia. Uma mistura chacoalhada de alucinação, devaneio e
mentira. A maior prova fora a perda de controle ao chegar em casa logo após o
fato, puxando do fundo da cômoda a caixa de chocolate amargo, espalhando sobre
o chão as cartas de crime e cumplicidade de um amor que nem mesmo sabia se era
verdadeiro, mas preferia me enganar afirmando que sim.
Cortei
os cabelos pensando se o agradaria. Vesti-me de um jeito delicado imaginando a
sua expressão de surpresa. Optei cerveja a vodca deduzindo a fala embolada de
que me acompanharia. No final da noite, entregue a lembranças e abandono,
deitei-me no chão quente da sala. Sob as minhas costas migalhas de pipoca e
álcool derramado, cantarolando juntamente ao som do mixtape de Fiona Apple... “Amor doentio, eu já olhei para você com a
mesma sede que olhei para as minhas velas de aniversário”. Nenhum dos meus
esforços para mudar atingiria Alex. Restritos ao meu mundo, perdidos no caminho
para o seu, por mais que eu desejasse a união dos planetas. Eu morderia uma
maçã envenenada, mas ele nunca me tiraria do leito com teto de cristal.
Como
permiti que meus pés flutuassem para uma área remota da terra, acotovelando-me
para longe da realidade? Flutuei por causa da baixa saturação do solo, pela
grama de verde opaco, as flores sem pétalas e os arbustos raquíticos que
morriam cada vez que o vento os chicoteava. Flutuei porque no alto me deitei
nas nuvens brancas, relaxei em sonhos com beijos sem julgamentos prévios de uma
vagabunda e o Don Juan, a mulher que amou o homem errado, o homem errado que
nunca amou a mulher certa.
“Ninguém vê quando você está
deitado na cama, e eu quero me rastejar para dentro dela com você...”.
Apesar
da breve melancolia, não chorei, não era meu direito. Direito tinha Alexa, ao
saber das noites em que satisfiz o seu namorado. Direito tinha Alex, ao
perceber que ferrara sua vida por uma garota que não valia a pena. Quem sou eu
no meio dessa história, além de um vergonhoso fiasco? “Alice, há tantas coisas em suas mãos, tantos amigos, tanta
curiosidade, tanto trabalho, e você preocupada com seus sentimentos? Tão boba,
a menina Alice, sofrendo pelo primeiro amor”. Que maneira mais simplória
para viver, me lamentando pelos cantos como se tivesse perdido algo que sempre
fora meu. Aceite, Alice, Alex Turner nunca foi seu.
*
* *
Propriedade.
Uma palavra que ao analisar cuidadosamente gerou calafrios. Fantasiar a frágil
história que Alex pudesse ser meu ou da Alexa foi um tremendo despropósito. Vitimar
um humano como propriedade, o vestir de escravo, sujeitá-lo ao contrato de um
superior... A muitos outros tipos de humilhação o homem pode se submeter, mas
no amor, com uma sensata permissão, ainda é optativo.
Numa
conversa esclarecedora com Pam, ela disse:
-
Se pararmos para pensar, o Alex nem mesmo é da tal Alexa. Caso fosse, como
classificaríamos aquilo que vocês tiveram?
As
visitas noturnas cessaram. As cartas, os telefonemas, as encomendas de
presentes entregues no sábado à tarde chegaram ao fim. Provavelmente nos
reencontraríamos em algum momento para a discussão de um trabalho. Como
distração, contribui para o novo projeto do Jim, o já conhecido ator amador e
guitarrista do Magic, irmão do Mike. Ele escrevera um roteiro de animação, em
que explicava a relação do poliamor com metáforas sobre caneca, café e açúcar.
Perdi longas horas desenhando os traços dos personagens principais chamados
Mok, Kaffe e Sokeri, com nomes de origens holandesa, dinamarquesa e finlandesa.
Devido a esse tema, iniciei a conversa sobre “propriedade” com Pam.
Uma
única vez Matt me visitara. A estranha ligação que criáramos fazia da nossa
pouca convivência o mínimo de incômoda possível quando juntos. Exercíamos uma
intensa consideração de um para o outro. Numa noite quente de sexta-feira, ele
me convidou para beber e comer alguma coisa em um bar de minha preferência, já
que pouco conhecia a cidade. Levei-o até o Groove e ficamos lá até quase 1h da
manhã, logo depois seguindo por ruas que poucas vezes frequentei. Duas horas
mais tarde estava me divertindo com o Matt em um karaokê abarrotado de
desconhecidos. Até hoje não sei ao certo como encontramos essa preciosidade,
que se tornou um dos meus estabelecimentos preferidos em Nova Iorque.
O
nosso contato se tornou contínuo quando, por meio de uma ligação, anunciara que
a banda se reuniria na cidade. Isso aconteceria numa quinta-feira de maio.
Reservei o último sábado e domingo do mês para o trabalho que fora proposto:
tirar algumas fotos que mais tarde serviriam para a divulgação do álbum novo.
Esse foi o meu primeiro trabalho “oficial” para o Arctic Monkeys.
Duas
semanas antes havia combinado com o Ryan que visitaríamos o Met. Desde que me
mudara, não tive oportunidade de conhecer o museu, embora muitas vezes tenha
caminhado pelos seus arredores, principalmente no Central Park. Na verdade
adiava essa visita, pois não queria fazê-la sozinha, já que fico bastante
tagarela quando presencio coisas que me inspiram. Há algum tempo Ryan investia
no crescimento de nossa relação. Depois de ficar com o Mike num show de um
cover do The Strokes, dispensara o outro alegando que o envolvimento fora
superficial e sem grandes intenções. Por sorte Michael afirmara o mesmo,
dizendo que, após ficar com Ryan, percebeu que ele não era nem metade do que
esperava. Não sei se foi por um coração machucado ou se realmente era verdade,
mas preferi ser cuidadosa com as investidas do Ryan. Aceitei o seu convite para
visitar o Met porque era um lugar público, proibido de extravagâncias. Nas
festas, boates e bares, em que nós bebíamos, fumávamos uma e puxávamos algum
pó, ele indo mais além do que eu, um usuário esporádico de morfina, como
costumava se intitular, tornava a situação um pouco mais complexa. Nesses
lugares tínhamos pouco controle sobre o corpo e qualquer coisa poderia
acontecer, mesmo que eu não estivesse tão a fim de ficar com ele. Os dois
pontos foram cancelados, quando, após a ligação do Matt, percebi que o trabalho
cairia no sábado da visita ao museu.
Através
de uma mensagem de texto, Matt me avisara que todos já estavam reunidos e que
deveríamos nos encontrar no dia seguinte, às 10h, no Gray’s Papay da 8th
Avenue, em West Village. Às 10h, já no sábado, ainda estava em casa, com todas
as minhas roupas molambentas amontoadas sobre a cama. Há muito não me
preocupava com beleza e a vaidade sempre estivera em último lugar na lista de
prioridades. O meu pensamento sofreu
leves alterações na noite passada, enquanto buscava na internet um bom site
para ver filmes online. No canto da página, logo abaixo da relação de “sites
amigos”, havia algumas matérias sobre famosos. Alexa Chung estava em uma delas.
Uma longa e cansativa matéria falando do incrível estilo da modelo e
apresentadora, sempre impecável com suas roupas básicas, mas glamourosas. Ao
abaixar os meus olhos, percebi que usava o mesmo pijama furado por, no mínimo,
uma semana. Concluí que nunca seria merecedora de matérias sobre estilo, sequer
um elogio de um hippie sobre o brinco baratinho que costumava usar.
Sentindo-me
tola, fútil e juvenil, como uma adolescente que se preocupa com a cor da saia no
primeiro dia de aula no colégio novo, apelei para a minha amiga Susie. Alex e
eu não nos víamos há muitos dias. Ele não presenciara a mudança dos
cabelos, o início do uso leve da maquiagem ou a troca das bijuterias de baixa
qualidade por algumas joias de família, dadas por minha bisavó antes de seu falecimento.
Eu queria, até certo ponto, ignorar o motivo da transformação. Tentava me
convencer que o Alex ter me deixado não foi por uma questão de vaidade e sim
por algum assunto que ia além do meu entendimento. Portanto, a minha autoestima
estava abaixo do fim do poço, lutando para se manter viva sem o mínimo de
alimento. Esse sábado de reencontro era o dia perfeito para jogar uma corda e
puxá-la para cima, para ser iluminada pelo sol. Como um ritual, me livraria da
regata branca suja de café e tintas, dando lugar a uma vestimenta mais
elaborada.
Susie
era estudante de Moda na Universidade de Nova Iorque e foi para ela que pedi
ajuda. Dormindo, pois ainda era muito cedo para a noitada de sexta-feira,
recebeu-me na porta de seu quarto com uma das piores caras. Caso tivesse dado
qualquer outra explicação para o meu incômodo, levaria um grito tremendo,
recheado de palavrões, enquanto a porta consumida por cupins bateria em minha
cara, esvoaçando os meus cabelos. Entretanto, havia uma mistura de vingança e paixão
na proposta que apresentara. Ela usaria o que amava a favor da minha melhora, e
esse era o poder da amizade e de alguém que quer te ver bem. No lugar da careta
sonolenta, brotou um sorriso sincero e tranquilizador:
-
Vou te ajudar e você vai mostrar para aquele filho da puta quem está por cima.
Liguei
para Matt, avisei que me atrasaria. Não dei explicações. Simplesmente disse “Me atrasarei, se segura aí um pouco
mais”. Quando finalmente saí do quarto de Susie, vestindo suas roupas retrô
compradas num brechó por menos de 12 dólares cada peça, meu estado de espírito mudara
consideravelmente. A baixa autoestima fora sugada para um lugar distante,
aprisionada numa construção clandestina, escura e fria na Rússia. Poderia
enfrentar Alex não só hoje, mas por todo o resto da minha vida, sem fraquejar
os joelhos e dar meia-volta.
Ao
fechar a porta do apartamento, acreditei que esse espírito poderoso
permaneceria no decorrer do dia. Ao sentar-me no fundo de um vagão do metrô, o
espírito desceu para debaixo dos meus pés, abandonado nos trilhos gastos,
ficando para trás de acordo com a velocidade do transporte. Alex enviara uma
mensagem de texto. Precisei ler o nome duas ou três vezes para ter certeza que
havia um “Turner” no topo da tela. Sim, Alice, ele está voltando.
“Soube que se atrasará. Peço aos
céus que esse atraso não se transforme em cancelamento. Noite passada foi
difícil dormir, pensando no quão complicado seria rever você. Acredite Alice,
às 3h da manhã meus olhos marejaram ao encarar o teto e concluir que nada me
controlaria quando estivesse por perto. Parece absurdo, não é? Fiquei todos
esses dias desaparecido e agora assumo sandices... Mas, Ali, o amor não é muito
o meu amigo e somos cúmplices nesse crime. O tipo de coisa que faz de um homem
escravo. Não posso disfarçar a urgência em transformar ficção em prática. Revelo
o seu corpo enquanto escuto o coro de Darlene. Tenciono tê-la, independente dos
nãos. Daria fim se assim quisesse, mas sei que não o quer. Aguardo-a cobiçoso,
experimentando decifrar qual decisão tomará. Eu careço Alice, simplesmente
careço de sua essência.”
BIA! Esse capítulo foi tão lindo, tão poético, tão elaborado! Não sei se consigo me recuperar. Ai, meu Deus! Que coisa mais linda a mensagem de Alex. Meu coração se inflamou em chamas e depois derreteu. Parabéns, não sei mais o que comentar. Jdjdfhksmbdjfkd "Careço da sua essência" Essa frase foi um tiro no meu peito. Quero chorar. Meu...
ResponderExcluirBeijos, Steph.
Adorei ler o seu comentário e de uma outra leitora que falou comigo no ask porque vocês reagiram da mesma forma que Alice ao receber a mensagem, como se Alex tivesse enviado uma idêntica para o celular de vocês, isso é ótimo! E, por favor, não chora que na próxima atualização tem mais e vai dar para saber qual atitude a Ali tomou depois de ler a declaração do Al, então se segura aí Steph <3
ExcluirAté mais!
- Bia xx
Ai meu deus, essa mensagem... Mal posso esperar para ver a reação de Alex quando ver ela toda linda e mais forte, sim. Posta logo
ResponderExcluirProvavelmente a próxima atualização rola entre quinta e sexta. Ah, Alex do jeito que é vai fingir que nem liga, mas no fundo morrendo de vontade de voltar com a Ali haha
ExcluirBeijão!
- Bia xx
Nem sei o que falar, vc é tipo uma escritora nota mil parabéns mesmo viu!!!!!!!!
ResponderExcluirEu me apaixonei pela sua fanfic Misfit Love e Humbug tb, só quero ver a desculpa que o Alex vai dar pra Alice por ter ignorado ela rrsss
Posta logo pls!
Obrigada, Rubia <33
ExcluirA desculpa dele vai pegar ela de jeito, sério. Então você já está enturmada com ML? Bom saber disso, viu? Fico confusa se tem leitora que começou por Humbug ao invés de ML 1 kkkkkk
Até a próxima atualização :)
- Bia xx
Meu Deus!
ResponderExcluirBia, Misfit já estava na minha listade leitura a muito tempo, mas nunca encontrava tempo pra lê-la. Fiz isso hoje e cara, estou completamente apaixonada. Você pinta a cena na minja mente de um jeito tão delicado e perfeito, apesar de não haver delicadeza nenhuma nessa relação doentia e conturbada entre Alex e Alice. As duas fanfics estão fe parabéns e sua escrita é completamenta. Só tenho elogios. De verdade.
Um grande beijo, Nana.
Aaaai, Nana, que bom ler isso de você! A relação de Alice e Alex é exatamente como você disse, delicada mas ao mesmo tempo "torturante", como se os dois tivessem de penar muito para fazer qualquer coisa que os mantenha juntos. Obrigada pelo comentário, obrigada por dedicar um pedaço de seu tempo a leitura de ML e ML - Humbug, preciso te agradecer sinceramente por isso <3
ExcluirBeijos enormes!
- Bia
No chão, largada, abraçando meus joelhos e chorando baixinho depois desse capítulo.
ResponderExcluirSó digo isso.
Bjos, Babs.